A pandemia da Covid-19 tem um caráter ontológico à medida em que revela a nossa imensa vulnerabilidade diante de um inimigo minúsculo e invisível, e que nos força a compreender a necessidade de existirmos ao lado uns dos outros. Vivemos um “enquanto”, portanto um tempo de passagem que requer a valorização do ato que salva e o pensamento que nos organiza em nossos vínculos mais diretos.
A hora é de atentarmos para a “teoria do bando”, com a qual o filósofo italiano Leonardo Caffo define a consistência do voo dos pássaros em conjunto, de uma simples mudança de direção à aterrissagem. Para esse espetáculo de liderança simultânea e coletiva, ele lembra que cada ave tem como referência preponderante a outra que está mais próxima. É a confiança no igual que está ao lado que assegura a precisão e o ritmo do grupo em seu todo.
Essa imagem a que recorro para afirmar que o sucesso ou o insucesso do estado de reclusão social preventiva contra o coronavírus depende diretamente do grau de intuição confiante de cada pessoa com relação a quem está a seu lado é utilizada por Caffo, em seu livro A Vida de Cada Dia (Loyola, 2019), para explicar o sentido ético pela analogia do automatismo das aves no compartilhamento dos espaços vivenciais.
A crença do autor no exercício do pensamento a partir do dia a dia está na capacidade humana de multiplicação existencial através da imaginação, do poder de se projetar em outro lugar e de se perguntar o que tem feito e o que pode fazer para transformar comportamentos em gestos. “Antes da religião e da política, até mesmo antes da guerra ou da tolerância, vem a filosofia. Se por meio dela aprendemos a estar no mundo, a realidade que observamos a cada dia assumirá novas formas e estruturas, novas relações” (p.12).
O crescimento da adesão à quarentena estaria, neste aspecto, diretamente ligado a dinâmica de cada um com seus familiares, vizinhos e prestadores de serviços mais próximos. A dificuldade de sincronia da população em torno desse método de proteção capaz de assegurar o menor número de vítimas durante a pandemia é sinal evidente de que o fato de sermos humanos, como algo anterior aos motivos de nossas atitudes, tem sido perturbado por inconsequentes razões econômicas e políticas.
Diante dessa conjuntura sinistra e devastadora, a filosofia, que tanto contribuiu para mudar historicamente o mundo, precisa assumir o seu papel na compreensão do que se passa, influenciando os indivíduos para que sigam a direção escolhida pelo altruísmo comum do bando humano do qual fazemos parte. O percurso que nos levará ao que poderemos nos tornar pós-pandemia estaria no ajuste da atenção, da confiança e do cuidado que temos com as pessoas imediatamente em torno de nós.
A reflexão de Leonardo Caffo questiona a noção de que o ser humano é um animal preponderantemente racional, apontando para o entendimento de que comumente fazemos mais escolhas movidos por intuição e sentimento do que pela racionalidade. É isso que produz a linguagem do voo junto e pode assegurar a eficácia do isolamento na redução da transmissão do vírus. A competição entre quem ajuda mais ou menos é uma imoralidade; o mais fundamental nessa questão é o que, antes de tudo, cada um faz silenciosa e desinteressadamente com relação a quem está próximo, tanto no sentido adjacente quanto de semelhante.