O silêncio dos que querem silêncio
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Quinta-feira, 19 de Fevereiro de 2009 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Primeiro vieram os sons em alto volume dos carros com as portas abertas. Depois, os aparelhos estridentes adaptados às malas dos automóveis. A máquina de poluição sonora evoluiu para os insuportáveis reboques com paredões de caixas de som. Quando se pensava que essa representação da pobreza urbana tinha chegado ao seu limite, surge a onda do telefone celular com alto-falantes potentes.
Como se não bastasse o incômodo causado pelas conversas em voz elevada nos cinemas, nos transportes coletivos, nos restaurantes, nas salas de aula, nos banheiros públicos e nos elevadores, agora a turma da poluição sonora anda com celulares sem fone, ouvindo música e batendo papo em alto e bom som, sem a menor consideração por quem está ao lado.
Aquele susto que a gente toma quando de repente as pessoas começam a falar bem alto ao nosso lado, como se estivessem falando sozinhas, agora conta com a voz de quem está do outro lado da linha. A generalização do inoportuno, o caráter da falsa cultura livre, da pessoa absoluta, está forjada para negar o que lhe é alheio. Ao fazer isso, esse tipo de usuário de celular, assim como o de som exagerado de carro, está manifestando algo mais profundo, que passa pela externalização da intimidade pela dependência do ruído.
Os hiperestímulos da atualidade produziram uma intolerância ao silêncio. O barulho confere identidade acústica a um segmento de consumidores. Ao se sentirem sozinhas na multidão de cadastrados pelos cartões de crédito, essas pessoas necessitam fazer zoada para se perceberem acompanhadas, para anunciarem que conquistaram um lugar ao caos. O barulho é um jeito de produzir silêncio e um sinal de pedido de socorro. E o pior é que esse pano de fundo não fica fácil de se pronunciar porque temos muito mais dificuldade de refletir sobre as nossas paisagens sonoras do que sobre as paisagens visuais.
A relação entre as pessoas e os sons nas áreas públicas chega a um grau de constância que os ruídos passam despercebidos. Os sons naturais das cidades são parte da cenarização da vida urbana, onde acontece a experiência coletiva. Os sons dos motores, do vaivém das pessoas, até das sirenes e alarmes, quando acionados de forma sensata, compõem a atmosfera das cidades. Tanto quanto as identidades sonoras dos sinos das igrejas, do apito do guarda de trânsito, da passagem do avião, do trenzinho das crianças e das batidas dos relógios das praças e seus sons reguladores da vida comunitária.
Sem essas sonoridades o mundo urbano perderia a autenticidade. O caso do problema crônico dos sons dos carros e agora dos celulares com potente emissão de áudio é que formam as intervenções sonoras indesejáveis. Isso torna o debate sobre o silêncio um dos mais sensíveis na convivência social. No livro “A afinação do mundo” (Editora Unesp, 1977), o compositor canadense R. Murray Schafer nos lembra que no Ocidente o ouvido cedeu lugar ao olho. “Na época dos profetas e épicos, o sentido da audição era mais vital que o da visão. A palavra de Deus, a história das tribos e todas as outras informações importantes eram ouvidas, e não vistas”.
Pensando nisso, fico a me perguntar se de uma maneira torpe não chegamos novamente ao passado; se a imagem não teria atingido um grau de saturação tamanho que, diante da fadiga visual, muitas pessoas não estariam recorrendo ao barulho, ao poder do som em busca de impor algum tipo de autoridade. Schafer compreende que onde quer que o ruído seja imune ao controle dos incomodados ele estabelecerá um centro de poder. O domínio do espaço acústico pelos alto-falantes dos carros e dos celulares se caracterizaria, assim, pelo poder de interromper e de se destacar na paisagem sonora.
Quando o barulho ensurdecedor conta com a retração dos inconformados ele está assumindo que é capaz de impor limites à subjetividade do outro. Nessas circunstâncias, o silêncio dos que desejam silêncio reveste-se de cumplicidade com a violência sonora. A melhor forma encontrada até agora para tentar calar os zoadentos tem sido o apelo à legislação, o que significa silenciamento e impor silêncio não é a melhor solução, embora, nesses casos, já seja alguma coisa.
Os esforços de redução do barulho que incomoda a população, como a Lei do Silêncio e o Programa de Silêncio Urbano (Psiu), são fundamentais no descompasso entre o indivíduo como condicionante e condicionado, mas insuficientes porque se sabe que a suposta igualdade perante a lei nem sempre se traduz em garantia de igualdade social. Assim, a liberdade reclamada pelos que fazem barulho é a mesma que por tanto tempo foi pregada pelos fumantes: “os incomodados que se retirem”.
É o que no livro “Em busca da política” (Jorge Zahar Editor, 2000), o sociólogo polonês Zygmunt Bauman coloca como dilema da individualidade privatizada: “O aumento da liberdade individual pode perfeitamente coincidir com o aumento da impotência coletiva”. Quer dizer, estamos essencialmente diante de um caso de anti-liberdade, com indivíduos transformados em consumidores, enquanto a política é substituída pelo mercado, onde sequer conta a igualdade jurídica, mas a disparidade no poder do dinheiro.
O tempo vai passando e a noção do inevitável leva muita gente a ver as mobilizações pelo silêncio como ações fadadas ao fracasso. Em contraponto aos resquícios neoliberais de que não há mais sociedades, mas apenas indivíduos, Bauman tem apresentado uma alternativa teórica, fundada no entendimento de que a liberdade individual só pode ser produto do trabalho coletivo. Ele sugere que se os problemas pessoais não se traduzem em causas comuns fica difícil reconstituir os consensos sociais.
Embora com o elevado ruído ambiental produzido por mal-educadas buzinas e escapes tonitruantes, os veículos com caixas de som expostas e os celulares hi-fi, se sobrepõem por uma forçada simbolização de distinção social. É o barulho como fator contribuinte da toxicidade multiplicadora de um estilo de vida fundado no vazio, na ausência, na carência, na insegurança social. Os que não têm o que dizer, falam pela voz do som estridente dos seus carros, não por serem individualistas, mas por precisarem no mínimo de cuidados psicológicos.
O desafio da sociedade diante desse fato é o de entender que um carro que produz pouco barulho precisa ser visto como um respeito à privacidade dos outros. Evitar que o som de um carro atinja o outro, que o som de um bar brigue com o de outro, são demonstrações de educação para o coletivo que precisam ser valorizadas. Ao propor que a sociedade reeduque o ouvido, o autor de “A afinação do mundo” diz que acredita no controle da poluição sonora, caso se desenvolva uma cultura auditiva, na qual as pessoas passem por exercícios de limpeza do ouvido de modo a aumentar sua competência sonológica comunitária.
A surdez nessa dimensão, não se restringe a um problema de saúde pública, mas uma questão cultural. Precisamos do silêncio para o restabelecimento da calma mental e do metabolismo da alma. Por isso essas atitudes degradantes da vida em sociedade precisam ser interpretadas além do seu significado óbvio e imediato, voltado para a poluição sonora.
Uma outra possibilidade de desaparecimento da poluição sonora, levantada por R. Murray Schafer, seria “uma ampla crise mundial de energia”, pois, os maiores ruídos da atualidade são tecnológicos. Assim, um trágico colapso de fornecimento de energia acabaria com esse problema. Mas acho que não somos estúpidos o suficiente para esperar por isso, não é mesmo?