O sonho da casa própria
Artigo publicado no Jornal O Povo, Caderno Vida & Arte, página 8
Terça-feira, 02 de Maio de 2000 – Fortaleza, Ceará, Brasil
O ato de sonhar é um processo de busca, com área de tráfego exclusiva, mas que necessita de adequados mecanismos da realidade cotidiana para ser posto em ação. Sem essa combinação, em qualquer nível que seja, os sonhadores podem ser envolvidos e tapeados em suas próprias ilusões distorcidas. A fantasia renitente é um dos traços mais íntimos da trama cultural brasileira. No campo da moradia temos um autêntico exemplo dessa vulnerabilidade nacional. Nem mesmo a superprodução midiática de novos elementos sedutores, conseguiu retrair o desejo por um domicílio com piso seguro.
O problema da casa própria acha-se hospedado no “pecado original” da pobreza. Os projetos de habitação dificilmente surgem em favor de quem precisa de residência. A astúcia mercantilista, comandada por quem tem muito bem onde morar, age nessa interface com tremenda competência e bastante falta de vergonha. Cada vez mais se constrói e cada vez mais aumenta o número de desabrigados. A esqualidez social que permeia o mundo das casas populares é uma espécie de desnutrição externa, que acocha e dói de fora para dentro. Quando os governos se submetem a desígnios equivocados como o de subsidiar o aumento da atividade na construção civil, em nome da geração de empregos, e bancam empreendimentos dissociados das necessidades da maioria sem-teto, nada mais estão fazendo do que o avesso da sua razão de ser.
As políticas de incentivo à realização do sonho da casa própria acabam colocando as pessoas mais humildes no desagradável celeiro da inóspita burocracia bancária e cartorária. Quem cai no conto pode estar caindo no fojo de uma vida vegetativa. Cidadãs e cidadãos neutralizados pela árdua tarefa de caminhar rápido, e por muitos e muitos anos, no labirinto moroso das documentações de vencimentos quase instantâneos e cheios de desencontrados pré-requisitos temporários entre si. As mesmas declarações e recomendações acabam sendo providenciadas várias vezes. É uma via-crúcis infernal. No dia-a-dia, nada mais parece acontecer, além do martírio dos reajustes desproporcionais, das renegociações sem fim, insistências, desistências, rescisões, desocupações, devoluções, leilões e reintegrações de posses. O saldo devedor interfere no amor inadimplente dos mutuários e a razão do lar muitas vezes entra na revisão estressante de prestações, parcelas e procelas na relação.
Na poesia dos casais, das famílias e dos solitários que procuram aconchego e liberdade no fetiche da casa, do apartamento, da kitchenette e do quartinho independente, o uso dos recursos públicos em favor de negócios privados desestabilizam emoções. Cômodos incômodos, usura e clausura, saqueiam crenças mínimas que tão bem poderiam ser preservadas. Ao pensar no seu cantinho, em um lugarzinho que seja, para poderem arrumar a gosto, as pessoas abrem mão do direito de desconfiar da armadilha que as aprisionam, para abraçar a certeza irreal da esperança. Milhares e milhares de vítimas padecem entrechocadas pela força da máquina de fazer dinheiro fácil e de anular sonhos. O transe hipnótico é tão convencedor que os esboços de revolta não ultrapassam muito os rumores das filas para abate e reciclagem. Possivelmente, porque na outra via da encruzilhada uma placa aponta o caminho tortuoso do aluguel… Sem senso de alcance político e sem uma conscientização mobilizadora confiável, perdemos a saída e nos afundamos no terreno baldio do descaso.
Como não são construídos para atender as necessidades humanas e suas expressões culturais, os conjuntos habitacionais e imóveis populares isolados não tem cor nem cheiro e, muito menos, árvores e sombras nas ruas. Nenhum pé de castanhola, acácia, algaroba, fícus, jambo… Muitas vezes, são construções que ocupam áreas antes sombreadas por mangueirais centenários. O que interessa é a aprovação do fiscal e a grana no bolso dos empreiteiros. Quem for pra lá que se lixe e arranje um jeito de compensar o desperdício. A utilização do espaço de moradia, o microcosmo da residência e as motivações comunitárias são irrelevantes nessa fronteira de insegurança. Os limites da vida, precariamente observados, dificultam a multiplicação e o entrelaçamento dos laços sociais.
O que cada um de nós quer exatamente é subjetivo, mas pode ser identificado quando há honestidade de propósitos. Um lar, um lugar… uma rima para amar. Dispersos entre o sonho da casa própria e o de reservar um lugar melhor na eternidade, deixamos de nos empenhar para fazer valer a vida no campo fértil entre esses dois lugares imaginários. A situação da moradia somente será resolvida com mudanças de prioridades nacionais. O desajuste está no contrato inadvertidamente assinado pela população com o polegar friccionado nas almofadas de carimbo do analfabetismo político. Os corretores e atravessadores da nossa frágil democracia não medem palavras para arbitrar a privacidade, o suposto conforto e a bendição de felicidade tranqüila dos mutuários. Presos ao sonho da casa própria reduzimos a noção do sentido de pertencimento a um país próprio, com biodiversidade cultural própria. Enquanto não colocarmos os valores econômicos subordinados aos sociais, estaremos entregues aos caprichos da irreversibilidade do tempo.