O sussurro do anjo torto
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Quinta-feira, 11 de Junho de 2009 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Na natureza, quando uma planta está submetida à ameaça de falta d’água seus frutos produzem mais sementes do que o normal. Querem ter mais possibilidades para garantir a continuidade da vida. Com os seres humanos esse fenômeno também se pronuncia no aumento da fertilidade das pessoas que se encontram em situação de risco. Em muitos casos esses impulsos energéticos da sobrevivência vão além das razões biológicas e alcançam o campo da criatividade. É o que demonstra com muita organicidade o quinto CD solo do compositor e cantor Edvaldo Santana, intitulado “Reserva de Alegria”, produzido em parceria com o adorável violonista e guitarrista Luiz Waack.
Com características radicalmente autorais, o mais recente trabalho desse filho de piauiense com pernambucana, nascido há 50 anos em São Miguel Paulista, zona leste de São Paulo, tem a integridade e a intensidade das obras autênticas, nascidas do conflito entre as pulsões de vida e morte. Edvaldo é um inconformado que transforma o inconformismo em impulsos estéticos, um estressado que reage produzindo beleza, enfrentando desventuras sendo venturoso. Faz arte impelido pelo desespero de não aceitar que o direito humano à criatividade seja devorado pelo marasmo da luta que se limita à sobrevivência.
O conceito de pulsão, concebido por Freud (1856 – 1939), como fonte de energia do corpo e da mente, ganha dimensão social e coletiva em casos como o de Edvaldo Santana, no qual o reservatório de inquietação é o seu próprio entorno. A periferia aparece poeticamente nua em sua música, negando-se a se entregar para quem pode pagar mais. Nela, percebe-se a evolução dos indivíduos, enquanto viventes, para pessoas, enquanto seres culturais. E assim, desesperado diante da dispersão do caos, ele cuida no novo disco de presentificar a alegria que guardara para o dia de aflição.
O cd “Reserva de Alegria”, viabilizado por patrocínio da Petrobrás, é uma obra que rompe decisivamente com qualquer estado de condicionamento a que foi submetida grande parte da música brasileira. A mescla de gêneros e ritmos apresentada nas doze faixas do trabalho faz parte da tensa história de vida do autor, expressando pontos vitais do nosso jeito de ser e viver, ao tempo e à forma que descreve as antinomias do cotidiano por meio de uma combinação muito bem feita entre os efeitos objetivos da realidade e os sentimentos essenciais da condição humana.
Para não deixar a gaveta da alegria “cheia de ficar vazia”, como diz Alice Ruiz numa epígrafe do encarte, Edvaldo abre o disco com uma balada em pegada de rock, para dar notícias de que se ausentou por força da “trilha do tesouro”, mas também para ficar em companhia de quem vale a pena. E desse rol de citações fazem parte Luiz Gonzaga, Itamar Assumpção, Paulo Leminski, Grande Otelo, Raul Seixas, Haroldo de Campos, Lampião e até Santos Dumont. E segue tirando alegria de pedra entre o mambo “Quem é que não quer ser feliz”, o xote “Luana de maio” e o samba-enredo “Jorge Amado no reino de Oxalá”.
Embora disposto a realçar a amorosidade, como faz entre guitarras de sotaque havaiano na faixa título, Edvaldo é sempre pressionado pelas potências disjuntivas a apontar seu violão contra as injustiças e a estupidez. Diferentemente de Jorge Benjor, que não consegue fazer música triste, o autor de “Reserva de Alegria” se entranha de destruição para fazer surgir o belo dos escombros. A intimidade da sua crônica pulsa no rap “Chacina”, parceria com Arnaldo Antunes, na rumba “Desemprego”, no bolero “Indulgência”, no blues “Abelha e Pardal” e explode na oração “A minha dor”, uma dor que parte de São Miguel onde as crianças lutam todo dia para “manter o que não tem”.
Mas a dor-canto em Edvaldo Santana não é só local, ela se manifesta na música “Raios do Oriente Médio” com uma perturbadora indagação, feita por ele e Chico César: “Será que é só com a dor que a gente é capaz de lembrar da paz? / Será que se for por amor alguém é capaz?”. Exercitar a dúvida é uma maneira de começar a se libertar. Edvaldo quer alegria e sabe que não é fácil. Na música “Indulgência”, ele recorre à alma hispano-americana para dizer não, para dizer xô, para proteger-se da pulsão de morte: “Não me contamine com a sua amargura”. A resposta vem na faixa “Pra viver é sempre cedo”, onde o autor declara que prefere apostar suas fichas em quem tem amor a dar a ser um crente com medo do senhor.
No trecho incidental de “Chacina”, o rapper Thaíde dá seu testemunho diante dessas situações em que os indivíduos acham normal “porque não têm outra opção, tem que ver isso todo dia”. E num clima de metais arranjados pelo genial trombonista Bocato, eles concluem que tudo se agrava por conta da impunidade de quem, “queima índio, oprime, compra o juiz”. Munidos de fina ironia eles arrematam a indignação dizendo que o diabo pede bis, rindo da nossa cara e dizendo: “Gostou? Fui eu que fiz”. A presença do hip hop se dá também em “Pra viver é sempre cedo”, com a participação de Rappin’Hood na passagem que afirma: “Se o bicho tá pegando parceiro, não vou correr”.
A música de Edvaldo Santana se destaca pelo modo peculiar com que interpreta o cotidiano. É uma música que nasce da maneira sensível de reagir e de atuar como pessoa e como artista, dando lugar para que os fatos e atos mais comuns ganhem grandeza, num cenário de contrastes supostamente irreconciliáveis em que foram submergidas as inquietações de alegria. O compositor e sua obra se mostram como conseqüência conceitual derivada das ruas, da práxis aplicada em sua totalidade ao ser social e sua afirmação como sujeito criativo. Edvaldo é um desviante que deu a volta pelas ruínas da arte e da sociedade para fazer a festa universal dentro da comunidade.
Ao ouvir e considerar as composições do cd “Reserva de Alegria”, cresceu em mim a admiração pelas letras, sonoridades e pela interpretação inconfundível desse bluesman cabra-da-peste. Edvaldo é de São Paulo, mas não é paulistano, descende de negros e índios do Nordeste, mas não é nordestino. Entretanto, para ser do mundo, aprendeu a amar e a ser de São Miguel. Ele é a própria coerência e a consistência nuclear e marginal da sua obra, uma obra onde o humano aparece com arte e com respeito, a despeito das circunstâncias. Edvaldo eleva a rotina à dimensão reflexiva ao colocar o pensamento da sua música nas calçadas.
É muito agradável escutar o trabalho de um artista que faz parte da própria obra, um artista que dá significado ao que faz, porque produz com a liberdade de se descrever à exaustão, sobretudo quando determinado, como em “Reserva de Alegria”, a realçar réstias de luz em ambientes sombrios. Ao mesmo tempo em que se afirma no seu canto de insurreição, ele não vende promessas, quer apenas conduzir um canto que é de todos, mas que nem todos conseguem ter a oportunidade de saber disso. Ricas em matizes estéticas, as canções de Edvaldo Santana nos sussurram que podemos nos ver com mais sabedoria e que a valorização da vida poderia configurar-se com mais dignidade em seus distintos níveis. No encarte, uma foto sorridente da dona Judite Alves Braga, confirma que é pra valer.