O tempo contado por histórias
Artigo publicado no Jornal O POVO, Caderno Vida & Arte, pág.6
Quarta-feira, 06 de novembro de 2013 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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FAC-SÍMILE
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Dos espetáculos autorais do grupo Bagaceira de teatro, eu havia visto apenas O Realejo, no Theatro José de Alencar, e Lesados, no teatro do Centro Dragão do Mar. De ambos saíra tomado pela poética, pela sutileza da construção cênica, pela força dramatúrgica e pela expressividade dos atores. Agora, tive a agradável oportunidade de ver, na Casa da Esquina, a envolvente peça Interior, na qual o público é acolhido para uma experiência de busca do significado do envelhecimento por meio da transmissão da memória e da proximidade da morte.

Com o cuidado de não idealizar a velhice, nem insinuar que a convivência com os mais velhos é coisa fácil, o Bagaceira trabalha com as personas da avó e da neta, ambas em faixas etárias caricaturalmente avançadas, para fazer girar conceitos sociais e aspectos da cultura do povo. Olhando para si mesmas, teimando em saber quem são, e não concordando com a condição de invisibilidade socialmente imposta aos idosos, as protagonistas têm na resistência à morte por inutilidade o centro da sua existência.

Essa impactante representação do descompasso entre as perspectivas de aceitação e de rejeição na vida humana é o resultado de interrogações que começaram sobre as razões de fazer teatro e avançaram, com apoio cultural da Petrobrás, para um encontro de perguntas e respostas em dois anos de residências artísticas vivenciadas no interior do Ceará com o Grupo de Teatro Ribeira, do Icó, a Companhia Artes Cínicas, de Tauá, a Casa das Dramistas de Beberibe e, em Itarema, com índios Tremembé e atores do assentamento Lagoa do Mineiro.

Com graciosa simplicidade e sofisticado impulso de emancipação emocional, a montagem, com texto de Rafael Martins e direção de Yuri Yamamoto, faz da interatuação dos atores com o público uma possibilidade de escuta do sussurro, do gemido e da inquietação das protagonistas para demonstrar que viver na velhice não é uma perda de tempo. As duas idosas, avó e neta, muito bem interpretadas pelas atrizes Samya de Lavor e Tatiana Amorim, embora vivam sempre de birra uma com a outra, não aceitam serem empurradas para a morte, com o conhecimento de quem cruzou várias gerações.

A figura da avó, evocada pelo Bagaceira, colhida na ambiência interiorana, ganha universalidade quando evidencia aspectos do desperdício da experiência acumulada. O jogo cênico move as velhas e o tempo, como quem bate na porta de uma casa onde de presença fixa só há a pessoa idosa, enquanto o restante da família, no caso das tataranetas animadas por Rafael Martins e Rogério Mesquita, tem na casa apenas um lugar de passagem. O peso dessa realidade está representado por uma indumentária constituída de elementos que vão desde instrumento musical, tênis e bolsas com toda sorte de apetrechos, até máscaras de reisado.

A fim de não serem enterradas vivas no caixão do esquecimento, elas apelam para a memória. O palco da peça é propício para esse tipo de ocupação na vida social, pois atores e público sentam lado a lado em arquibancadas, como se estivessem sentados em um banco de alpendre, comum nas casas do interior. O grupo Bagaceira oferece com esse recinto chegado um espaço de ação onde todos passam a ser personagens, quando o que está em cena é a necessidade dos velhos de contarem histórias. Mais do que causos, o ombro a ombro permite que se ouçam as subjetividades do que o outro tem para contar das suas verdades e mentiras.

No esforço de contar do passado para se justificar no presente, as velhinhas da peça Interior solicitam às pessoas da plateia que anotem em um papel o nome de suas avós e onde elas nasceram. Colocam em um pequeno baú e fazem circular com fotografias e fatias de bolos, na tentativa de provar ao público que estão vivas. Descoladas, elas não repetem o padrão social do discurso de vítima; querem dizer que a experiência da velhice não é de incapacidade, que, mesmo produzindo limitações biológicas, o envelhecimento não é uma doença, e que o ancião não é um morto que ainda respira. Desvendando traços dessa relação complexa com a idade avançada, as personagens mostram que gente não tem data de validade a vencer. A plateia se emociona e ri um riso nervoso e amoroso de identificação e de reconhecimento.

Como no livro “Carta da Vovó e do Vovô”, de Ana Miranda (Armazém da Cultura, 2012), elas fluem nos sentimentos próprios de quem já viveu tanto que teve tempo para ser uma pessoa completa. Em Interior, a avó e a neta, também centenária, foram crianças, adolescentes, adultos, velhos e chegaram ao estágio dos idosos, quando o tempo passa a ser contado não pelo calendário, mas por histórias. O espetáculo do grupo Bagaceira mexe com a verdade das nossas recordações, ao instigar a noção de que o idoso tem direito de se encontrar com a sua própria idade, sem necessariamente ficar confinado no passado.

Em tempo:

A peça Interior fica em cartaz em Fortaleza até o final deste mês de novembro, sempre aos sábados e domingos, às 19 horas, na Casa da Esquina (Rua João Lobo Filho, 62 – Bairro de Fátima).