O tempo dos seres que não dependem dos filtros das evidências dos sentidos para existir é o tempo da eternidade, o tempo da poesia, da arte, da imaginação, do ócio reparador, do devaneio, do amor sem pressão psicológica e do encanto da paixão.

Todo dia temos esse tempo em nós, mesmo em situação de rotina. É o tempo da lua, da admiração, da devoção, das nuvens que passam, das folhas que brincam ao vento e da percepção do outro enquanto semelhante. Somos parte das variáveis dos eventos que fazem o mundo rodar em infinitas durações.

O ‘quando’ é apenas um recurso de localização temporal que inteligentemente criamos para organizar o cotidiano e as projeções de ‘para trás’ e ‘para frente’ que podemos fazer a partir de uma ‘localização’ na eternidade que chamamos de presente. No devaneio ficamos leves, mas nem sempre notamos a desconstrução que nessas circunstâncias fazemos do tempo. Somente depois, quando retomamos a noção de cronologia, é que percebemos o tempo em que ficamos fora do tempo.

A centelha do devaneio acende as luzes que clareiam lugares onde a velocidade não tem ligação com a relação entre os corpos, mas com a comunicação arquetípica, seus emissores, meios e receptores. “A Igreja conheceu o inconsciente através do pecado. A psicanálise conheceu o inconsciente através da neurose e da psicose. Mas há outro jeito: o dos poetas. Os poetas conheceram o inconsciente através da beleza”, escreveu o pensador brasileiro Rubem Alves (1933 – 2014).

A maneira pela qual nos dispomos a ver o mundo é fundamental na dinâmica das imagens que comandam o nosso discurso interno e influenciam o nosso comportamento. Isso mostra o quanto é necessário ter um bom repertório de percepções, visto que a viagem pelo tempo da eternidade pode ocorrer motivada por um sem-número de distrações espontâneas e induzidas.

Grafia antica (1939), guache do artista argentino Xul Solar (1887 – 1963). Acervo: Malba.

Um exemplo bem comum da elasticidade do tempo é o tempo da imaginação durante a leitura, no qual muitas vezes a página espera ser passada enquanto a mente vagueia em ramificações de significantes. Circular por esses intervalos de eternidade é uma anti-atividade de finalidade sem fim. O tempo perdido em divagações, que muitos consideram desperdício, é parte da nossa essência criadora e dos mecanismos indispensáveis a uma saudável convivência social.

A orientação do tempo é uma necessidade antiga da humanidade. Por milênios, o ser humano se guiou pelos astros. Mesmo as meridianas, as ampulhetas, os relógios d’água e os relógios de sol marcavam o tempo, mas não desempenhavam o papel de ajustar o cotidiano de diversos lugares às mesmas horas. As meridianas, como se pode ressaltar, indicavam o meio-dia de uma determinada aldeia, e não de todos os lugares. O agora era local.

No mundo conectado das mídias digitais e do mercado de conteúdo, os fusos horários começam a perder o sentido original de marcação das horas conforme a localização, pois os meridianos das telas tenderão a adaptar o tempo à massificação. É como se a formatação desse tempo veloz dispensasse o inconsciente. Já que isso não é possível, as imagens trabalhadas por nossa mente no tempo da eternidade apenas respondem ao que recebem instantaneamente das telas. E o tempo se vai.

Fonte
Jornal O POVO