O terceiro sonho
Artigo publicado no Jornal O Povo, Segundo Caderno, capa
Quarta-feira, 21 de Outubro de 1987 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Depois da segunda guerra mundial o planeta Terra perdeu seu eixo de rotação social com a guerra-fria e esquentou a repressão ao comportamento da juventude, numa espécie de translação dominadora e opaca, que teve os jovens como suas principais vítimas. A razão de existir do homem estava no espaço, sem uma definição táctil ou uma esperança guardada no interior dos átomos da bomba atômica que os norte-americanos cruelmente detonaram em Hiroshima.
A vida não tinha cor. A grande alegria de qualquer jovem era uma festa de 15 anos ou de formação de curso de normalista. Nada mais. As pessoas nasciam pra dentro de si mesmas e se criavam por fora da realidade. Sem futuro. Pelo menos até que esse excesso de contração fizesse explodir o íntimo de cada sonhador, normalmente sem causa definida. E como bananas de TNT tocadas pelos estopins da angústia, eles passaram a quebrar cinemas após filmes de rock, a lutar de correntes e canivetes nas esquinas, tentando provar que existiam mesmo que fossem considerados trinitrotolueno estourando, em curras, a virgindade das donzelas protegidas pelo falso moralismo da época.
Enquanto o astronauta russo, Gagarin, afirmava que “a Terra é azul”, a situação continuava negra na superfície da orbe. Foi aí, paralelo a revolução das comunicações, da indústria cultural que condiciona gostos, preferências e sensações, que surgiu o primeiro grande sonho da juventude moderna: o movimento hippie, considerado a rebelião dos jovens. Eles transformaram a revolta numa filosofia de vida que negava tudo, mas que apresentava soluções vestidas sob cabelo comprido, roupa suja, música estridente, pés descalços, blue jeans e rock’n’roll.
Dos blousons noirs, na França, aos “transviados”, no Brasil; passando pelos beats, estadunidenses e os teddy boys, na Inglaterra, cada uma dessas atitudes foi desaguando na formação do conceito “Faça amor, não faça guerra” (make love, not war), que tornou-se o lema do sonho que ganhara corpo de realidade pelo mundo ocidental. Os hippies viveram abertamente o amor, a liberdade sexual. O rapaz, reprimidíssimo não mais precisava ser incentivado pelo pai a iniciar-se na vida sexual com prostitutas, nem as minas (garotas) teriam mais que esperar tanto por um ensopado beijo ou temer a possibilidade de “dar um mau passo” (perder a virgindade). Apesar de muitos continuarem acreditando piamente que a masturbação cegava, enquanto a pílula anticoncepcional gerava a necessidade de novos questionamentos.
Se movimentos políticos tradicionais partiam do princípio de que a sociedade era a justificativa para a existência do homem, o hippismo deu uma guinada nesse processo: o homem era a única justificativa para a existência da sociedade. Ela deveria adaptar-se às necessidades humanas e não vice-versa. O hippie, livre dos principais conceitos (sexo, dinheiro e poder), começou a voltar-se para si mesmo revivendo o artesanato e procurando no misticismo a resposta para suas perguntas transcendentais. Dando-se ao direito de fazer o que quisesse: andar nu, vestir-se de mosqueteiro, beber, comer e fumar o que tivesse vontade.
A partir do momento em que um jovem se via livre de todos os valores que lhe haviam sido impostos, o despertar de uma nova consciência exigia de imediato a necessidade de locomover-se e de espalhar pelo mundo sua experiência. Assim, a cada ano uma rota era traçada, independente dos efeitos deteriorantes da guerra do Vietnã e do colonialismo selvagem dos Estados Unidos e da Europa no chamado Terceiro Mundo. Da Espanha ao Nepal, da Turquia a Marrakesh ou da Califórnia a Cuzco, eles amedrontavam os defensores de tabus, conseguindo viver de carona no globo.
Acontece que esta liberdade foi identificada pelo sistema como um perigo ao desenvolvimento pragmático da humanidade. A contracultura foi atacada estrategicamente pelos determinadores da ordem, que passaram a descaracterizá-la onde era possível. Ser hippie virou moda. A contestação transformou-se em romantismo, cultuando macaquinhos em posição de ioga, consumindo incensos, gurus e conceitos completamente distorcidos. Quando o jovem se percebeu atacado, ao invés de procurar controlar as destrutivas forças da sociedade de consumo, resolveu fugir, no tempo e no espaço, em busca de um primitivismo marginal. E os anos 60 findavam com a última manifestação hippie verdadeiramente significativa que foi Woodstock: durante uma semana, 500 mil pessoas viveram um festival que traduzia a realidade de seus sonhos.
No início dos anos 70, John Lennon anuncia que “O sonho acabou” e a contracultura parte para a sua nova fase: as sociedades alternativas. Sem a essência hippie nas veias, nada valia para a juventude todo o conforto que a idade tecnológica prometia. O segundo sonho aparecia com caráter popular, agindo no meio da massa através da arte e de outros meios que puderam ser utilizados na proposta concreta de uma saída para o impasse que a civilização ocidental criara para si mesma. Os caminhos foram reformulados a partir das experiências dos principais líderes das comunidades hippies que, juntamente com sociólogos e outros cientistas sociais, publicaram em 1971, no congresso de Berkeley, Califórnia, uma declaração de princípios.
A carta dizia que “a nova sociedade, a sociedade alternativa, deve emergir do velho sistema, como um cogumelo novo brota de um tronco apodrecido. Acabou-se a era do protesto subterrâneo e das demonstrações existenciais. Acabou-se o mito de que os artistas têm que estar à margem da sua época. Devemos, de agora em diante, investir toda a nossa energia na construção de nossas condições. O que for possível utilizar da velha sociedade, nós utilizaremos sem escrúpulos: meios de comunicação, dinheiro, estratégia, know-how e as poucas e boas idéias liberais”. A visão estava lançada. Vários encontros foram feitos e algumas comunidades organizadas.
O novo sonho não teve o mesmo impulso do hippismo porque foi mais racionalizado, não contou com a força imensurável da rebelião espontânea. “Faz o que tu queres pois é tudo da lei”, estava mais para teoria do que para ação. Alguns líderes do movimento, como Paulo Coelho e Raul Seixas, no Brasil, investiram tudo o que puderam na proposta. “Com o dinheiro que ganhamos com música, resolvemos comprar um terreno em Paraíba do Sul, para a fundação de uma comunidade que servisse de centro de estudos para projetos sociais e existenciais mais adaptados ao homem de hoje. Pretendíamos, em nossa boa-fé, ajudar o ser humano a realizar o eventual grande sonho de cada um: a descoberta de poderes ocultos e, conseqüentemente, um passo para uma nova civilização. Entretanto não vingou. Ainda persistia nas pessoas, que inicialmente nos apoiavam, um grande preconceito a respeito de qualquer coisa que fosse organizada”, resumiu Paulo Coelho em um texto intitulado “Crônica da nossa civilização”.
A fuga para o esotérico e os desencontros místicos para onde se dirigiram muitos adeptos das sociedades alternativas entrou em choque com a turbulenta situação político-econômica mundial, movida pela elevação do preço do barril de petróleo pelos árabes, e acabou com cheiro de patchuli entre a ordem de ser natural e o importante é estar “com a cabeça feita para não dar bandeira”, como dizia a letra de um rock progressivo do Peso. Foi por aí que o movimento parou “nos embalos de sábado à noite”, com surfistas de longos cabelos oxigenados e parafinados. A gíria passou para “cada um na sua”. O Livro da Lei, de Aleister Crowley (a base das sociedades alternativas), que afirmava que a civilização deveria entrar em colapso total ainda neste século, partindo para outra forma de sociedade como única solução de sobrevivência, volta ao esquecimento do longínquo 1904.
Os anos 80 chegaram com uma ressaca do movimento punk emergido na segunda metade da década anterior, e com a notícia de que “o que importa é destruir”, que Joãozinho Podre (Johnny Rotten) profetizou na própria separação da banda Sex Pistols, da qual era o líder. Tal como os modismos que simbolizaram o grito dos punks, sua música foi logo absorvida pela indústria cultural, reunindo influências do reggae e do primitivo rock’n’roll. Há exceções que não chegam a merecer conotações de movimento multicontinental.
Assim como os punks, os darks apareceram sem vontade de ver a cara do mundo. Aquele papo de chocar com o negro que a sociedade representa. Sem curtir, sem resolver. É difícil conceber a idéia de que o tédio possa mudar alguma coisa. Fazer alguém sentir prazer na vida, muito pior. O que se pode esperar de um jovem individualista, de pele embranquecida cadavericamente, que bebe coquetéis chamados Chuva Ácida, Kamikaze, Hepatite e Lagoa Cinza? Ser deprimido com estilo é um direito, mas não um movimento, um sonho.
Não existe fórmula para as necessidades da juventude. Claro que o sonho hippie teve sua época e que ela já passou; que a tentativa das sociedades alternativas também cumpriram seu momento; que não é preciso retroceder para avançar… Mas fica pouco provável que em um futuro próximo os jovens possam conceber um terceiro sonho estruturado, se continuarem apáticos. Os yuppies (jovens profissionais “bem sucedidos”, cercados de confortos da eletrônica japonesa e da sofisticação do design italiano por todos os lados) e a moçada do pós-tudo deixam a desejar. Tendências são tendências… nada mais.
A juventude dos anos 80 segue um caminho tão deprimente quanto a do pós-Segunda Guerra. Só que com uma diferença enorme: os jovens de trinta anos atrás tinham uma inquietação interior que, somada aos seus desejos de liberdade, fez com que explodissem no sonho hippie, rompendo assim as mordaças de um sistema de informações ocultas. Hoje, com o “excesso” de acesso à informação, muita gente passou a ter condições de interagir mais com a realidade, mas o que se vê é uma juventude desencorajada, seguindo como ovelhas dóceis (apesar de algumas negras) a isca consumista do faminto lobo das corporações internacionais, que já não precisa se vestir de cordeiro, simplesmente porque já construiu a imagem de bom pastor.