O valor social da doméstica
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno3, pág.2
Quinta-feira, 02 de maio de 2013 – Fortaleza, Ceará, Brasil
No mundo em que predominava o trabalho servil, o patrão era dono das pessoas. Em troca de comida e de teto, tinha o destino delas nas mãos. Com a chegada da industrialização, o proprietário das máquinas passou a ser o dono da força de trabalho das pessoas, podendo dispor do esforço das suas contratadas para o que quisesse e pelo tempo que necessitasse. No capitalismo contemporâneo, a força de trabalho passou a ser um elemento de negociação e não mais uma posse do patrão.
Nessa evolução faltava um instrumental jurídico que possibilitasse a alforria da pessoa trabalhadora doméstica. O Brasil estava no século XIX nesse quesito. Com a promulgação (2/4/2013) da Emenda Constitucional 72/2013, que institui regras para a igualdade de direitos celetistas entre quem trabalha em ambientes domésticos e as demais pessoas trabalhadoras urbanas e rurais, a sociedade brasileira confirma a sua disposição de seguir corrigindo iniquidades sociais produzidas por fortes resquícios de pensamento de colonizado.
Com o crescimento do mercado interno brasileiro, fruto de melhorias salariais, de programas de transferência de renda e de políticas de proteção social, as pessoas que trabalhavam em troca apenas de prato de comida, sem direito a folga e sem privacidade, puderam negar essa constrangedora dependência. Com a nova lei, o trabalho doméstico sai do estatuto da criada para virar posto de trabalho de funcionária. Inicia-se, assim, o deslocamento da função servil de caráter classista, para uma jornada de trabalho de 44 horas semanais, horas extras, FGTS e seguro por acidente de trabalho, dentre outros direitos em fases de regulamentação.
A lei não é retroativa e vale para todas as pessoas trabalhadoras, que prestam serviços em residências: serviços gerais, cozinheiras, babás, cuidadoras de idosos, motoristas, governantas, zeladoras, jardineiras, caseiras e seguranças. O trabalho doméstico é considerado de caráter pessoal para o patrão, com variações salariais de acordo com as especificidades das funções exercidas. A vida do empregador, pessoa física, sem contador e sem tempo para operar burocracia, será facilitada com a unificação da cobrança da contribuição previdenciária (INSS) e do Fundo de Garantia (FGTS), com cálculo e impressão de boleto feitos diretamente na internet.
O estabelecimento da decência nas relações de trabalho doméstico é de grande importância para acabar com o estigma de profissão de segunda classe carregado por essa categoria. A mudança no modo de reconhecer uma posição social digna para a doméstica é, inclusive, uma oportunidade de ganho de percepção social que muitos pais passarão a dar aos filhos. O aprendizado do respeito ao outro como pessoa e como profissional, dentro de casa, tem uma função educativa relevante para os tempos atuais, marcados por invisibilidades e intolerâncias.
A palavra “doméstico” vem do Latim “domus”, que quer dizer casa, domínio e conhecimento das atividades do lugar onde se mora. Condomínio, por exemplo, é um conjunto de “domus”. A priori, uma pessoa empregada doméstica deveria ser considerada pelo que pode agregar de valor humano na dinâmica da estrutura familiar, como espaço privilegiado de sociabilidade. Infelizmente o que prevaleceu nessa relação foi a mentalidade econômica aplicada à domesticação de animais para torná-los caseiros, produtivos e viver em função dos donos da casa.
A observação de temas dessa natureza reforçam em mim a convicção de que o pós da hipermodernidade deve ser pensado em termos de Direito da Pessoa e não mais de Direitos Humanos. O Direito da Pessoa — do nós, do vós, do eles e elas — está mais associado à vida e ao viver como um todo, e não apenas a aspectos morais e racionais do humano, que a modernidade separou da natureza para, por necessidades contextuais, promover o amparo legal e de liberdades civis do sujeito lógico. Por isso, proponho um movimento civilizador ancorado no Direito da Pessoa.
O livre pensar da cultura popular diz com sabedoria que não há mal que não traga um bem. O fato de, no Brasil, o trabalho doméstico remontar tragicamente ao sequestro de meninas e moças nativas, que eram levadas às fazendas após a destruição de suas malocas, e à exploração da mulher negra na economia da escravidão, não justifica a exacerbação de ressentimentos paranoicos na hora de tratar o assunto.
Comparo essa situação com a própria importância da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), esse instrumento histórico de cidadania (decreto-lei nº 5.452, de 01/05/1943) que ontem completou 70 anos, sempre comemorado como uma conquista dos trabalhadores, em que pese a alegação de que ela foi feita por inspiração fascista de Mussolini (1883 – 1945), para servir as classes dominantes no início da industrialização no País e para promover o governo do presidente Getúlio Vargas (1882 – 1954).
No que se refere ao trabalho doméstico, o que me parece mais urgente nesse momento é a sociedade assegurar a liga do sentimento de dignidade de quem trabalha em residências pelo reforço à crença na justiça e na proteção constitucional dos Direitos da Pessoa. A ocasião é propícia a uma mudança de hábitos, resultante do entendimento de que o trabalho doméstico, mesmo não sendo uma atividade econômica e difícil de medir, é produtivo, de grande valor social e um considerável traço cultural brasileiro.
É comum ouvirmos o argumento de que a atividade laboral em residências é coisa de país subdesenvolvido, que, cá com os botões do nosso complexo de inferioridade, deveríamos imitar os caminhos das velhas potências colonizadoras e a maneira como elas administram seus dramas na vida doméstica. Tempos atrás, refletindo sobre isso, deduzi que “o melhor exemplo desse engano histórico é o fato de continuarmos tratando o empregado doméstico numa condição social inferior, simplesmente por ausência explícita de mais-valia.” (“A profissão discriminada”, OP, 04/04/2000). Afirmei isso, inspirado na crença que tenho na força da nossa organicidade cotidiana e sua capacidade de frear o processo de desumanização, pela recuperação do tempo comunitário.
Há uma transformação em curso nessa atividade. Serviços de prendas domésticas são oferecidos por empresas que intermedeiam profissionais do lar, e serviços de consultores para organização de residências surgem como trabalho de alto prestígio. Muitos brasileiros ricos que vão estudar no exterior fazem complemento de bolsas e mesadas, cuidado de crianças (babysitter) em preciosas experiências de trabalhos temporários, que não aceitam fazer no Brasil por trava ideológica. Aqui pega mal. E por que pega mal? Porque o pensamento dominante diz que trabalho doméstico é coisa de pobre. Este é também um dos motivos pelos quais muitas pessoas preferem se submeter a trabalhos degradantes em empregos pouco decentes a avançarem na lida doméstica. O senso comum, de ricos e pobres, diz que uma carteira assinada como “doméstica” é uma espécie de atestado de pobreza.
São muitas as teses que esse tema sugere. Há muito o que pensar e o que fazer nesse sentido. Vejo o trabalho doméstico como um instrumento de aproximação das pessoas, de convívio entre classes diferentes e como ponto de transição para distintos projetos de vida. Na nossa casa, temos exemplos de empregadas domésticas tratadas com dignidade, que puderam se preparar para assumir outros postos de aspiração profissional. Promover a valorização do trabalho doméstico é, portanto, uma forma de aumentar possibilidades de mobilidade e de ascensão, descolando a pessoa doméstica do abominável servilismo.