Onde a adolescência fez a curva
Artigo publicado no Jornal O Povo, Caderno Sábado, página 2
Sábado, 27 de Agosto de 1994 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Para a inconstância que rege a vida dos pontos de encontro da juventude em Fortaleza, a Volta da Jurema dos anos 80 foi recordista de movimentação e curtição. Era alcalina a bateria que acumulava tantos pores-de-sol, tanta adrenalina bem liberada, tanta carga positiva, coletiva. Quem não pintava na Volta, não tava na cidade, não acontecia.
Como nas pracinhas das cidades do interior, as pessoas se encontravam para paquerar, patinar, circular de braços dados, enfim, sentir o outro, querer o outro, ver o outro… os outros. Na Volta da Jurema se estava com alguém, sempre se cruzava com alguém que tinha a ver. A solidão não tinha jogo de cintura para fazer aquela curva.
Quem não respirou essa atmosfera pode imaginar um imenso shopping center, que hoje é o point dos jovens, com vitrine de mar aberto, de barco, de vontade de viajar. Os pais não temiam dar carona aos filhos para que se divertissem ali, porque a segurança era feita de olhos multiplicados e inquietos. Dava para adolescer à vontade, sem o caráter de segurança e entretenimento formal oferecido hoje pelos centros comerciais refrigerados e excludentes.
Muitas emoções sacudiram a Volta nesse tempo. A instalação do estúdio de praia da FM do Povo, logo no início da década, plugou todo mundo numa agitação calorosa. Dava para mandar recadinho em letreiro luminoso, pedir a música preferida e ganhar brindes inesperados. Rita Lee cantava “papai me empresta o carro” e aquele som jogava pólen no ar. Nesse clima nasceu a chata guerra das tuítas, uma insuportável disputa de potências sonoras motorizadas. Mas fazia parte, o ambiente comportava, suportava.
No anfiteatro, sempre lotado, shows e mais shows sintonizavam cabeças dispersas. Geraldo Azevedo antes de embarcar para o Festival da Juventude em Moscou, tocou a sua “Táxi Lunar” na brisa da Volta. “Pela sua cabeleira vermelha / pelo raio desse sol no mar”. Ah, Beira-mar… era o tempo do karaokê, do telão com clipe do Pink Floyd, o auge do Sorvetão e o sanduíche do Gaúcho.
A Volta da Jurema só dividia a atenção dos seus freqüentadores assíduos com a saudosa Praça Portugal, com sua feirinha e seus bivares (1). Era atração fatal, entre apresentações de grupos de capoeira, das academias de dança e vendedores de caipirinha. Mas esse espaço de convivência sadia acabou aos poucos afugentado pela violência e pelo crescimento da prostituição servida ao turismo imediato. Resta, contudo, uma memória viva, incandescente.
Nessa memória, guardo ainda a vigília silenciosa pelo assassinato de John Lennon. Estávamos lá, estimulados pelo poeta Farias Frazão e por uma convocação planetária da Yoko Ono. Ao mesmo tempo em que nos concentrávamos na Volta, admiradores do ex-Beatle em todo o mundo faziam dez minutos de silêncio no instante em que o autor de “Imagine” era sepultado. Era uma tarde de domingo, de dezembro de 1980. O sol demorava a sumir no horizonte, mas se foi. Ficou a história para contar.
(1) Bivares é uma alusão ao artista plástico alternativo Eurico Bivar, contumaz freqüentador da Praça Portugal nos anos 80