Onde começa a história
Artigo publicado no Jornal O Povo, Caderno Vida & Arte, página 8
Domingo, 15 de Setembro de 2002 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Os acontecimentos, os fatos, o cotidiano, as vidas vão passando e se não lhes damos sentido caímos na desventura dos que não sabem aonde ir. A história é um feixe de possibilidades em horizontes de retrovisor. O reconhecimento de pontos históricos referenciais, como centros de energia da memória, oferece os por quês das trajetórias de civilização. Conhecer o dono da voz que nos embala em conceitos sociais, culturais e políticos é a melhor forma de ficarmos preparados para a tão propalada condução do destino que nos importa.
Pensamos e agimos segundo os valores que assimilamos. Dessa simbologia depende a nossa autoconfiança e, por sua vez, o sentimento coletivo de derrota ou de vitória. Adotar os marcos do colonizador é assumir a orientação que nos mantém colonizados. Quem se ajoelha em demonstração de aspiração de ser o outro, vê tudo maior e mais difícil de alcançar. A falta de um norte ancestral de emancipação resulta neste determinismo cheio de descrenças, deixando sem resposta as tensões entre o indivíduo, a sociedade e os poderes públicos.
O maior referencial cearense de integração cultural aparece no romance Iracema, de José de Alencar, publicado em 1865. Nele, uma bela índia tabajara dos lábios de mel, sacerdotisa de Tupã, morre literalmente de paixão pelo colonizador branco. Conscientes ou não, seguimos a sina narrada por esse encanto amoroso cravado em nossas raízes nativas. Isso contribui para um problema estrutural que legitima o discurso dominante a reproduzir seus choques civilizatórios iniciados há cinco séculos. Iracema acende o fogo da hospitalidade, satisfazendo a fome e a sede do estrangeiro, com boa caça, farinha-d’água, frutos silvestres, favos de mel, vinho de caju (mocororó) e abacaxi (ananá).
Depois de informar que se chama Martim, o amante de Iracema revela com orgulho que tem o sangue “do grande povo que primeiro viu as terras de tua pátria”. Com o guerreiro branco ela tem o filho Moacir, o primeiro cearense miscigenado, que vai embora com o pai. Depois, numa alegoria entre a lenda e a realidade, Martim (Soares Moreno) retorna para tornar-se o fundador do Ceará, em 1611. Temos nestas imagens os primeiros ícones da nossa fundação. Um que chegou antes pela visão fantástica da oralidade e o outro instalado pela versão da historiografia oficial. Muitos outros momentos carregam essa força definidora do nosso caráter.
Dentro das demarcações focadas a partir do olhar do colonizador, algumas datas eventualmente são lembradas, tais como fevereiro de 1500, quando Vicente Pizón teria descoberto o Ceará; 1535, ocasião em que houve a criação da Capitania do Siará, doada a Antônio Cardoso de Barros, como um dos quinze lotes que formavam as doze capitanias hereditárias, divididas pela coroa portuguesa; 1603, ano que Pero Coelho inaugura a primeira bandeira exploratória no Ceará; e a ocupação de Martim Soares Moreno, em 1611. O calendário histórico indica ainda 1621, como a incorporação da Capitania do Siará ao Maranhão e Grão-Pará e 1656, ano de anexação à Capitania de Pernambuco.
De 1604, no tempo em que aconteceu a resistência local à invasão de Pero Coelho, na Ibiapaba; a 1884, quando o Ceará, antes de todos os demais estados brasileiros, aboliu a escravatura, passando pelos ataques dos nativos às missões jesuítas e pela participação do Ceará na Confederação do Equador, em 1824, muitas datas podem ser realçadas estimulando-nos a levantar a cabeça na construção do futuro. A bem da verdade, a movimentação da sociedade em torno dos marcos históricos suscita em si novas necessidades de interpretações. Mas temos uma data histórica que deveria ser o chacra da emancipação social no Ceará, que é o ano de 1799.
O que aconteceu de tão importante neste ano? Ora, nada mais nada menos do que a nossa independência definitiva de Pernambuco. Mesmo com governadores nomeados pela monarquia, o Ceará passa a partir desta data a ter vida política própria. São pouco mais de duzentos anos e nesse pequeno espaço de contextualização existencial e histórica já produzimos uma contribuição espetacular para a formação do Brasil. Que o digam os beneficiários das obras de José de Alencar, Rachel de Queiroz e Patativa do Assaré (literatura e poesia), Clóvis Bevilacqua e Paulo Bonavides (direito); Padre Cícero e Dom Helder Câmara (religiosidade), Raimundo Cela e Antônio Bandeira (artes plásticas), Alberto Nepomuceno, Humberto Teixeira e Eleazar de Carvalho (música), Capistrano de Abreu (história), Dragão do Mar e Tristão Gonçalves (cidadania), Delmiro Gouveia, Luís Severiano Ribeiro, Luís Carlos Barreto, José Macedo e Edson Queiroz (empreendedorismo), Aderbal Freire-Filho (teatro), Luciano Carneiro e Chico Albuquerque (fotografia), Chico Anysio, Renato Aragão e Tom Cavalcante (humor), Florinda Bolkan e Luísa Thomé (cinema e televisão).
Sem esquecer o filho de Iracema e Martim, na condição de primeiro cearense mestiço, precisamos referendar o desligamento de Pernambuco como a base de um discurso articulado e contundente na demarcação das nossas vontades, a fim de que possamos inserir o sujeito cearense em nós mesmos e romper com a compulsória mentalidade de colonizado. Chega de nos olharmos de fora para dentro, de modo pitoresco como um navegante estrangeiro descobrindo curiosidades. Precisamos estabelecer um diálogo entre o hábito tradicional e uma nova maneira de nos vermos. Só assim tornaremos o passado uma plataforma de impulsão do presente e não um grilhão que nos mantém presos à submissão sequaz. A configuração da nossa emancipação social começou um dia desses. Se dermos vez ao estica e puxa hiperbólico da imaginação, conseguiremos fugir dessa linearidade histórica. O processo de evolução da cidadania necessita desse cruzamento de ondas, de ventos contrários e de um ponto de partida capaz de honrar o nosso sentido de destino.