Milagres do Padre Cícero
Artigo publicado no Jornal O POVO, Caderno Vida & Arte, pág.5
Quarta-feira, 23 de julho de 2014 – Fortaleza, Ceará, Brasil
FAC-SÍMILE
Passados 80 anos da morte do padre Cícero Romão Batista, ocorrida no dia 20 de julho de 1934, seus milagres continuam desafiando conceitos e preconceitos sociais, bem como o próprio sentido do que seja milagre. Seus feitos extraordinários estão diretamente associados ao milagre da fé na vida prática, e não a abstrações que possam dizer se o sangue na boca da beata Maria de Araújo escorrido no ato de recepção da hóstia sagrada tem ou não explicação natural.
Os milagres do padre Cícero são parte do caráter simbólico de acontecimentos socioculturais, portanto, não restritos a aspectos teológicos e morais. Estão na tolerância resultante da aliança entre a fé em Deus e a crença na política, coisa que desde os tempos medievais era tida como de impossível conciliação. Se a devoção do tipo religiosa quando levada a efeito na política vira fascismo no fenômeno do mito de Juazeiro ela tornou-se um inusitado instrumento de convivência produtiva entre diferentes estratos sociais.
Religião e política são duas necessidades humanas que nasceram de fortes imperativos existenciais; uma na crença da salvação, e a outra, no desejo por um mundo melhor. E o padre Cícero operou com essas duas variações de esperança, como quem regula a dosagem do ar e do combustível de um velho motor social de dupla carburação, no qual o exclusivismo da mediação com o céu e com a terra, reclamado por uma ou outra religião, e por um ou outro grupo partidário, cedeu espaço a múltiplos canais da relação com Deus e das interações políticas.
Óbvio que não dá para comparar forma e intensidade de uma máquina motriz do contexto da passagem da monarquia para a república no Brasil com os motores de injeção eletrônica midiática, comuns em diversas religiões e determinantes na política atual. Padre Cícero é um contraponto à dinâmica da teologia da prosperidade tão presente no mercado da fé e nas movimentações da cidadania de varejo, em confluência com a turbinação dos sonhos de felicidade da sociedade do consumo.
O sentido de santo na brasilidade profunda, onde germinou a semente do fenômeno do padre Cícero, não é o mesmo concebido pela teologia clássica. Está mais próximo da caracterização de santidade da África muçulmana dos nômades do deserto. Na cultura dos saarianos tuaregues, o conceito de santo (Santón) está relacionado aos indivíduos que se destacam por sua fé e religiosidade. Neste aspecto, a experiência objetiva da fé religiosa em Cícero Romão se reflete na própria figura do “Santo Padim”, transformada em fazedora de milagres, cuja prova de gratidão pelas graças alcançadas se expressa nos ex-votos.
Os ex-votos são chamados simplesmente de “milagres” pelos romeiros. A peça mais comum dessa representação do “pedido atendido” é a escultura de madeira com detalhes do motivo da promessa. A comemoração do cumprimento do voto de fé coloca o sagrado em escala cotidiana, seja na Casa de Milagres de Juazeiro do Padre Cícero, seja na basílica de São Francisco de Canindé ou em lugares de consagração a outros grandes santos católicos. Cada ex-voto tem história e motivo que podem ir da cura de doença à conquista de amor. A história dos ex-votos perde-se no tempo, na história de feitos, prodígios e da crença no poder de curar atribuída aos santos.
Os esforços do papa Francisco para a atualização da Igreja quanto a não ostentação e a busca por estilos simples de vida, podem até encontrar no padre Cícero identificações que justifiquem sua reabilitação. Deste ponto de vista, a perspectiva de canonização do santo de Juazeiro faz sentido, porém, do ponto de vista da cultura, amarrar a figura do padre Cícero a uma só religião diminui seu poder de influência espiritual e põe uma barreira em sua força catalisadora de mito expressivo da cultura nordestina.
Padre Cícero é de fato o primeiro santo genuinamente brasileiro. Digo isso, tomando por base evidências relacionadas ao tanto que ele é tradicionalmente cultuado, aos fartos registros comprovados de suas virtudes e fé, e aos testemunhos permanentes de milagres alcançados por seu intermédio. A aclamação popular não precisa encontrar respostas científicas para milagres. Milagre para o povo é uma crença que produz sensação de influência na resolução de problemas complexos. E as pessoas que ainda seguem atraídas pelo fenômeno do padre Cícero, oito décadas após a sua morte, o fazem por motivos religiosos, políticos, econômicos e culturais.
O que mais me atrai no padre Cícero é o significado adicional de milagre que a sua agitada biografia gerou por meio de trocas culturais ebulientes. Tanto que é esse o tom que ofereço ao leitor juvenil no meu livro “Ciço na guerra dos rebeldes” (Cortez Editora, 2014). Nele, religião e política estão subordinadas ao domínio cultural mais amplo, onde as pessoas se movimentam pela transformação subjetiva mais radical da existência. O que, provavelmente, segue revigorando o mito de Cícero, 80 anos depois, são os aspectos declarativos de interações do viver, na ótica da tríade lacaniana do real, do imaginário e do simbólico, como constituição da realidade.