Os poemas das nossas portas
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Quinta-feira, 23 de Setembro de 2010 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Quando tocamos a campainha na casa de alguém, normalmente observamos a porta, corremos o olhar por sua superfície e, quando ela se abre, aquele olhar contido pela madeira, pelo vidro translúcido, pelo metal, deixa escapar para dentro da casa uma série de pensamentos lembrados ou não que produzimos naqueles instantes. Da mesma forma que ao ser aberta a porta permite a nossa passagem, enquanto fechada, ela isola a visita em sua própria mente.
Na nossa casa, há um bom tempo resolvemos deixar as portas permanentemente abertas. Quem quer que chegue ao andar onde moramos pode ir logo “entrando” enquanto atendemos à campainha. O canal de entrada e saída é a poesia. É por meio de dois poemas, aplicados com recursos museográficos nas duas portas, que nos comunicamos imediatamente com quem chega a nossa casa. Não há sequer o número do apartamento nessas portas, apenas a conexão da poesia.
Poemas abrem portas porque inspiram os encontros. Escolhemos dois poemas para cumprir essa função de cicerone em nossa casa; dois poemas que fossem extremamente profundos e ao mesmo tempo extraordinariamente leves; poemas que sintetizassem as antenas da nossa alma e as raízes da nossa cultura. Esses atributos foram identificados em “Ítaca”, do poeta grego-egípcio Constantin Cavafis (1863 – 1933) e em “Terra Bárbara” do poeta quixadá-fortalezense Jáder de Carvalho (1901 – 1985).
Ambos são casa e porta porque falam da aventura de sermos de um lugar e de termos um espírito nômade. Ambos são travessia e território de movimento porque contam do que existe de eterno em nosso tempo de passagem. Ambos dão sentido de grandeza à existência e à espiritualidade, porque nos colocam em contato direto com as nossas dimensões reais e imaginárias. Com “Ítaca” e “Terra Bárbara” a plenitude da vida se manifesta como uma proeza individual e coletiva, marcada pela instigante ardência do viver.
O exercício de escolha de um poema-síntese do que somos é maravilhoso. Penso que cada pessoa deveria pelo menos ensaiar esse mergulho de auto-sondagem cultural, independentemente de querer ou não colocar na porta de casa o poema apanhado nas profundezas de si mesmo. Mais desafiador e empolgante ainda é compartilhar o achado com quem se mora, com quem se vive, para que a poesia seja fixada na porta com o máximo de cumplicidade. Para que os poemas coubessem nos espaços das portas da nossa casa e ficassem agradáveis de ler fiz uma pequena adaptação na estrutura dos textos, de modo a tornar mais visível o que neles identificamos como nossa tradução.
O poema de Constantin Cavafis, evocado da “Odisséia de Homero”, está aplicado na nossa porta porque engrandece a vida, ao desejar que ela seja longa, e por nos conclamar a priorizar o que nela realmente vale a pena, pela elevação da alma na construção da experiência de ser e viver. Em uma das portas do nosso apartamento o poema “Ítaca” está escrito assim:
“Quando partires de regresso a Ítaca, / deves orar por uma viagem longa, / plena de aventuras e de experiências. / Ciclopes, Lestrogônios, e outros monstros, / um Posêidon irado – não os temas, / jamais encontrarás tais coisas no caminho, / se o teu pensar for puro, / e se um sentir sublime teu corpo toca. / Terás sempre Ítaca no teu espírito, que lá chegar é o teu destino último. / Mas não te apresses na viagem. / É melhor que ela dure anos, / que sejas velho já ao ancorar na ilha, / rico do que foi teu pelo caminho, / e sem esperar que Ítaca te dê riquezas. / Ítaca deu-te essa viagem esplêndida. / Sem Ítaca, não terias partido”.
As buscas da minha adolescência me levaram a ler a “Odisséia de Homero”, que relata o retorno do rei Ulisses (Odisseu) à ilha de Ítaca, depois da Guerra de Tróia. Foi uma prova de percepção do mundo. Algumas das passagens do livro nunca mais deixaram de ser imagens fortes em minhas recordações. A necessidade do líder de ouvir o canto das sereias, mas não se deixar tragar pelo seu poder de atração é uma delas. Dentre outras, destaco também a parte em que Ulisses se reencontra com o seu fiel cachorro; o primeiro disfarçado de mendigo, para poder saber o que se passava nas entranhas do seu reino, e, o segundo, largado aos monturos por uma sociedade que dava como morto o seu soberano.
O poema de Jáder de Carvalho, natural do veio poético e da árida política do sertão, eleva à vida ao seu patamar mais íntegro, ao desafiar o senso comum dos códigos morais dominantes, com padrões antropológicos que primam pela experiência libertadora da ética e suas balizas culturais. Foi na infância, quando eu morava no coração do poema, que senti sua pulsão na voz da professora Terezita Barroso; depois, já em Fortaleza, ganhei o livro das mãos do próprio autor, e dele extraí os versos de “Terra Bárbara” que estão escritos assim na outra porta do nosso apartamento:
“Na minha terra, / As estradas são tortuosas e tristes / como o destino do seu povo errante. / Viajor, se ardes em sede, / se acaso a noite te alcançou, / bate sem susto no primeiro pouso: / – terás água fresca para a tua sede, / – rede cheirosa e branca para o teu sono. / Na minha terra, / o cangaceiro é leal e valente: / jura que vai matar e mata. / jura que morre por alguém e morre. / Eu sou o índice do meu povo: / se o homem é bom – eu o respeito. / se gosta de mim – morro por ele. / se, porque é forte, entendesse de humilhar-me / – ai, sertão! / eu viveria o teu drama selvagem, / ou te acordaria ao tropel do meu cavalo errante, / como antes te acordava ao choro da viola”.
A resposta dada até hoje pelas pessoas que nos visitam é que os poemas antecipam sentimentos calorosos e espontâneos de boas-vindas. As reações variam, embora apresentem um ponto em comum: uma porta que tem um poema exposto em sua parte mais visível não é uma porta que apenas serve para fechar e para abrir; ela faz com que o visitante se torne ativo por menor que seja o tempo de espera. A simples noção de que existe uma poesia escrita na porta já inicia uma compreensão sobre a casa e sobre os que nela moram.
Quando lidos, os poemas transformam-se em pensamentos, em emoções e em comportamentos. Às vezes o visitante não tem tempo para ler os textos, antes de a porta ser aberta de fato, e pede para concluir a leitura. Em outras ocasiões demonstra quase uma desculpa de invasão, como se tivesse olhando pelo buraco da fechadura. É que a poesia tira o aspecto opaco e translúcido da porta, expondo toda a nudez da identidade e da afetividade de quem dela se aproxima pelo lado de dentro da casa.
A leitura do poema-síntese que alguém escolhe para aplicar na porta de casa parece rebobinar a consciência que temos uns dos outros, ora abstraindo memórias esquecidas e ora esboçando novos espaços de sua efetiva compreensão. A poesia de porta é um gesto particular de distinção, um jeito prévio de acolher as pessoas que chegam a nossa casa, antes de tomá-las entre os braços e solicitar que entrem.
A experiência de ter dois poemas emblemáticos nas portas do nosso apartamento vem me ensinando que, ao sair de casa, é muito bom ler na porta que “fechamos” um pouco da poesia que nos revela. Todo dia espero o elevador lendo um ou outro trecho de “Ítaca” e “Terra Bárbara”, quando não, seus textos inteiros. A sensação que me dá é que tenho um lugar para regressar, mas que não é um lugar comum e sim um lugar que resume o mundo; um lugar onde deixo armada uma rede cheirosa e branca; um lugar que transforma o vaivém da luta cotidiana em uma viagem esplêndida.