Pacto pela união sul-americana
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Quinta-feira, 05 de Junho de 2008 – Fortaleza, Ceará, Brasil
O mundo está em fase crítica de definição da sua multipolaridade. Essa situação eleva a pressão sobre países vizinhos para que procurem formas de fortalecimento na cooperação regional. Na América do Sul, esforços de criação de uma comunidade econômica, política e social vinham sendo desprendidos há quase uma década e agora alcançam sua institucionalidade, com a instalação da Unasul, União das Nações Sul-Americanas, no dia 23 de maio passado, em Brasília, em um encontro do qual participaram 11 presidentes e 1 vice-presidente dos 12 países da América do Sul.
Descobrimos que está na hora de chamar de “nossos” alguns dos problemas que afetam todo o continente. O desafio não é fácil, visto que, para isso, precisamos aprender a tirar lições positivas do peso histórico que afeta nossas mobilizações locais e influências transnacionais. Os incomodados com esse amadurecimento democrático acusam a iniciativa de ser apenas retórica, bravata populista e de ter sido feita de afogadilho, comparando com os cinco séculos que a União Européia levou para ser constituída.
Alegam que essa tentativa de autonomia não pode dar certo porque é difícil resolver os conflitos existentes entre Colômbia e Venezuela, entre Colômbia e Equador, as ameaças de secessão na Bolívia e o fato de Peru e Chile terem acordos bilaterais de livre-comércio com os Estados Unidos. Mas se não houvesse problemas assim, talvez perdesse sentido a necessidade do estabelecimento de um tratado de fundação de um pacto pela união sul-americana.
Quer funcionando como uma instituição orgânica ou mesmo apenas como um fórum de grandes temas, a Unasul inaugura na América legítima, um bloco político, econômico e cultural para consolidar os ideais da unidade sonhada por Simón Bolívar (1783 – 1830) no século XIX. A unidade, no desenho de uma confederação de repúblicas americanas, que pudessem tratar conjuntamente da defesa, da solução de conflitos e que lutassem pela abolição do tráfico de escravos africanos.
As circunstâncias políticas atuais possibilitam a aproximação, a convivência e o diálogo no continente. A Unasul é a afirmação de um processo democrático, que se distancia das ditaduras e das democracias tuteladas, construído por governos apoiados pela participação direta ou indireta dos movimentos populares e de organizações políticas da sociedade civil. Mulheres presidentes, operário presidente e índio presidente demonstram que muita coisa mudou, enquanto a permanência da Guiana Francesa, como território ainda ocupado pelos franceses, revela que a situação de domínio permanece ativa.
Quando observamos os nomes dos novos chefes de estado do continente, fica fácil reconhecer que parte significativa desse grupo compõe um campo político favorável às políticas de redução das desigualdades: Alán García (Peru), Álvaro Uribe (Colômbia), Bharrat Jagdeo (Guiana), Cristina Kirchner (Argentina), Evo Morales (Bolívia), Fernando Lugo (Paraguai), Hugo Chávez (Venezuela), Lula da Silva (Brasil), Michele Bachelet (Chile), Rafael Correa (Equador), Ronald Venetiaan (Suriname) e Tabaré Vázquez (Uruguai).
A Unasul é uma proposta de todos esses líderes, visando a cooperação na economia, infra-estrutura, segurança social, pesquisa e inovação, multiplicidade cultural e na criação de um Conselho de Defesa para o continente. A União Sul-Americana caracteriza-se na figura de bloco político, econômico e cultural, exigida pela nova ordem mundial. Trata-se de um instrumento de resolução de conflitos, de diplomacia preventiva e de impulso à participação, que vai além do conceito geográfico que o denomina.
E por falar em identificação geográfica, a América do Sul deveria ser chamada apenas América. Foi por causa dos relatos de Américo Vespúcio (1454 – 1512) em suas viagens ao Brasil, que os cartógrafos do século XVI deram o nome América a essa região. Quer dizer, foi mais do que isso: por meio dos seus conhecimentos de astronomia, Américo comprovou que o lugar encontrado por Cristóvam Colombo (1451 – 1506) em 1492 não eram as índias, mas um continente por eles até então desconhecido. Américo Vespúcio ajudou ainda a desenhar o mapa desse “novo mundo” e seu nome passou a designar o continente.
A utilização da referência sul-americana para projetar a abrangência da Unasul me parece boa como tática inicial. Latino-americano é um adjetivo que vem do tempo em que a França exercia grande influência na região. Era uma maneira daquele país autenticar seu domínio, com base nas raízes comuns das línguas que floresceram a partir do latim, tais como o português, o espanhol, o italiano, o romeno e, evidentemente, o francês. Já Ibero-Americano foi a forma que portugueses e espanhóis encontraram para tentar continuar sozinhos na divisão luso-hispânica do continente.
O conceito de união, escolhido para a Unasul, me parece mais adequado do que o de integração. Dá o sentido de conjunto de nações e não cai na hipocrisia de que tudo é igual na diferença. Em um mundo de tensões acentuadas, esse pacto de vizinhos pode se tornar uma voz importante em temas urgentes e estratégicos para o estabelecimento de uma agenda comum relativa às questões de suprimento energético, meio ambiente, segurança alimentar, mudanças climáticas, sustentabilidade, interculturalidade e justiça social.
A Unasul se faz necessária também para servir de espaço autônomo de conhecimento e de debate dos temas que extrapolam as fronteiras nacionais, a exemplo do separatismo, aquecimento global, crescimento da violência e do caos urbano. Serve ainda para criar situações de proteção da biodiversidade das nossas florestas, da água potável e da criatividade cultural, que a “governança econômica multinacional” tem chamado de “bens públicos mundiais”.
Com a União das Nações Sul-Americana o continente passa a ter um instrumento político para o entendimento mútuo das suas gentes. Em artigo publicado na coletânea “Aliança das Civilizações, Interculturalismo e Direitos Humanos”, (Ed. Universitária Cândido Mendes, 2008), o pensador mexicano Néstor Canclini afirma que o que precisa estar na mesa de discussões são os “conflitos interculturais” e a busca por respostas sobre como atuar em um mundo com tanta diversidade.
A Unasul poderia atuar como um projeto emancipatório na gestão das diferenças, dos interesses contrários e da potencialização do que temos em comum. O “multiculturalismo crítico” do educador canadense Peter McLaren, que consiste em “considerar as diferenças em relações e não em identidades separadas”, torna-se fundamental para esse projeto. Canclini cita que o Peru inclinou-se a separar indígenas e crioulos; a Argentina e o Uruguai fizeram um esforço para substituir aborígines por população branca e o Brasil experimenta uma situação na qual o sujeito preserva para si a possibilidade de distintas vinculações.
A aproximação de vizinhos guardaria, assim, a dimensão referencial da cultura e o continente só teria a ganhar na interrelação e na interculturalidade democrática. Canclini argumenta que é preciso colocar dentro do debate da política questões que levem à superação das perguntas que se referem apenas a “como reivindicar o meu”. Descobrir as formas de compreensões recíprocas, a tecnosociabilidade, enfim, o direito de conhecer o outro, de ser conhecido pelo outro e de melhorar a convivência de diferentes, na construção de uma sociedade do reconhecimento.