Paixão por Fortaleza
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno3, pág.2
Quinta-feira, 11 de abril de 2013 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Muitas pessoas que me veem indignado com certas travas de mediocridade impostas ao meio cultural de Fortaleza me perguntam por que não fui (por que não vou) embora, morar fora, se tive (e tenho) a oportunidade de fazer isso. Minha resposta: porque tenho paixão por essa cidade. Como a paixão acontece em uma relação de intensidades, ao expressar o que sinto por esse lugar, que me acolheu na adolescência e tempos depois me concedeu formalmente o título de cidadão, revelo sentimentos que se estendem entre reprovações e fascínio.
Aproveitei esses dias que antecedem o aniversário de Fortaleza, comemorado no dia 13 de abril, data em que, no ano de 1726 este lugar foi elevado à condição de vila, para revisitar alguns textos que escrevi sobre a cidade e medir a quantas anda o meu sentimento a respeito dessa questão. Descobri que no meu trabalho jornalístico predomina uma indignação esperançosa, enquanto na produção musical e literária sobressai-se o carinho intuitivo e cúmplice.
No livro/cd “Benedito Bacurau – o pássaro que não nasceu de um ovo” (Cortez Editora, 2003) o texto literário, recitado por Antônio Nóbrega, mostra bem esse conflito: “Foi assim que certa vez, quando deu por si, o Benedito Bacurau estava no velho Passeio Público procurando algum tipo de rastro das crianças que um dia tinham brincado por ali. Crianças que vagueavam ao sabor do vento peralta dos finais de tarde. O mesmo vento teimoso que ainda insistia em correr pelas frescas sombras daquelas árvores abandonadas”. Talvez tenha sido ele que me levou a ambientar no Passeio Público a história do livro/CD “Se você fosse um saci” (Armazém da Cultura, 2012), quem tem música em parceria com Valerie Mesquita.
A música “Vamos passear pela cidade”, que se associa à ave símbolo da infância, chega como uma brisa na voz da cantora Olga Ribeiro, reforçando que “A cidade é cheia de graça” e tentando o despertar da meninada em um “Bate que bate chamando a alegria”. Parceria com a compositora e educadora Ângela Linhares para o CD “Samba-le-lê” (Plural de Cultura, 1999). Paixão de porta em porta, de praça em praça, chamando meninas e meninos a ocuparem a cidade, seus logradouros públicos, suas ruas sem calçadas e sem ciclovias.
Em outro trecho, a interpretação caprichosa do artista pernambucano evoca o coreto encantado: “O centro de muitas cidades nem sempre é exatamente no centro. Às vezes, o centro pode estar em um dos lados da cidade. É que se costuma chamar de centro o ponto que deu origem à vida urbana de um lugar, onde se dá também a maior concentração de pessoas indo e vindo, vindo e indo sem parar. Pois bem, no centro de Fortaleza, que não é no meio da cidade, fica a Praça do Ferreira. E no centro da Praça do Ferreira, bem no centro mesmo, fica a Coluna da Hora”.
Cantarolada por Nóbrega na aventura bacuralesca e gravada por Suzana Salles no CD que acompanha o livro “A Festa do Saci” (Cortez Editora, 2007), a música “No ritmo das batidas do relógio da Praça do Ferreira” foi uma homenagem que fiz ao coração da cidade: “Tudo tem a sua hora / Tem a hora de acordar / A hora de passear / Tem a hora de estudar / Tudo tem a sua hora / Tem a hora de comer / A hora de se ganhar / Tem a hora de perder / Tem! tem! tem! / Você chegou bem na hora / Agora é a hora H / Bate o relógio da praça / Que é hora de brincar / O coração da cidade / É cheio de nove horas / Vento passa a toda hora / Não tem hora pra parar / Os meninos cantam assim / Dim, dom, dim, dom! / As meninas cantam assim / Dim, dom, dim, dom! / E o relógio bate enfim / Tem! tem! tem!”
No passeio que fiz por esses escritos, fiquei contente por encontrar uma correspondência na minha paixão pela cidade. “Meu nome não é Fortaleza por acaso. Fortaleza vem de forte, de lugar marcado por ataques e resistências. Vem de muitos casos de conquistas, amor, destemor e de todos os feitos e jeitos de uma gente espirituosa e acolhedora”, contou para mim a cidade personagem do livro que escrevi para as crianças se interessarem pela história desse lugar tão admirável. O livro “Fortaleza, de dunas andantes a cidade banhada de sol” (Cortez Editora, 2005) resume bem o meu amor ardente por essa terra.
É de Fortaleza que parto e para Fortaleza que retorno ao me deslocar pelo mundo. Falo assim, sem medo de magoar Independência, o lugar onde nasci, porque são amores diferentes, passíveis de serem amados simultaneamente. E nunca neguei para Fortaleza que ela é a cidade que mais gosto, depois de Independência. Prova disso é que quando fiz com Tato Fischer uma canção de coordenadas geográficas para o vaivém da amizade, das paixões e dos amores, chamamos a nossa parceria de “Latitude” e marcamos Fortaleza no ponto de encontro: “Dou-te o mar de minha cidade / Verdes águas, sol e sal / Cajuína, dunas, pipas / Concha, altar zodiacal / Esse mar tem cais e porto / E o mundo a contemplar / Mil histórias, fantasias / Para ir, para ficar / Leme, vela, barlavento / Te conduzem onde for / Dou-te o mar e o horizonte / Em Declaração de amor / Nossa Senhora da Assunção de Fortaleza / Me guiai nesse vagar / Minha voz leva tua fé acesa / Na viagem pelo mar”. E ficou super bonita na interpretação de Ricardo Black nos CDs “Canta Nordeste” (Globo/1995) e “Samba do metrô amor” (Independente/1996).
A paixão e a indignação andam lado a lado. Ninguém fica contente de ver o que se ama sendo depauperado. No artigo “Homo sapos urbanos” (OP, 02/11/1996), recorri à metáfora do sapo escaldado lentamente para criticar a nossa apatia ante à aceleração do crescimento desordenado e à falta de imaginário urbano: “Até quando apelaremos para unguentos e ataduras na memória e nas relações afetivas com o cotidiano da cidade?”. A pergunta ficou no ar e tempos depois eclodiu no artigo “A decadência exuberante” (revista Plural, 01/101998): “Não basta o amor que temos por ela. Íntima e afetuosa, a cidade amarga estonteada os exageros de uma elite de frívolas megalomanias em seu complexo de inferioridade”.
No mesmo texto, ao constatar a dor de cotovelo de viver em um lugar que não tem semblante definido, nem personalidade simbólica, desabafo: “Pouco cantada na perplexidade de uma hostilidade popular velada e de uma intelectualidade obediente, Fortaleza está amordaçada por sua pobreza geral opressiva, anunciando um futuro imponderável”. Não dá para separar as pessoas do ambiente construído, reclamo em “Se essa rua fosse minha” (OP, 10/04/1999). Reincido tempos depois, perplexo diante de uma arquitetura que encanta e reprime (DN, 01/10/2005), mas defendendo que a saída é a porta da rua, da melhoria da gestão dos espaços de bem-estar onde a cultura floresce pela semeadura da convivência, assemelhando os diferentes.
Apaixonado, queixo-me da carência de mais intensidade nos vínculos da ficção com o uso funcional de Fortaleza. No artigo “Olhares atentos sobre a cidade” (DN, 06/12/2007) caio em repulsão: “Canta-se pouco, pinta-se pouco, dramatiza-se pouco a nossa cidade (…) A Praia de Iracema de Luiz Assumpção, o Pirambu de Chico da Silva, o Conjunto José Walter do grupo Fratura Exposta, o Bairro Ellery de Lauro Ruiz de Andrade, enfim, o imaginário de cada bairro precisa dos seus criadores sinceros”. E no texto “A estética do pertencimento” (DN, 06/03/2008), concluo: “Nenhum lugar existe para nós, sem que façamos parte dele e sem que ele faça parte de nós”.
Já disse no artigo “A autoridade metropolitana” (DN, 25/11/2010) que a minha paixão por Fortaleza estende-se pela “dimensão das vivências e convivências culturais”. E mais recentemente, na coluna intitulada “Desafios da Secultfor” (DN, 27/12/2012), resumi a antinomia do meu sentimento: “Em que pese os problemas resultantes das desigualdades, o fruir cultural da cidade depende da criação de uma ambiência propícia às expressões da liberdade de ânimo. A satisfação de ser de um lugar, de um nodo de onde parte a nossa voz, motiva os artistas, os escritores, os poetas, as cidadãs e os cidadãos a cantarem a cidade”. É possível.