Palavra do Seu Toinzinho
Artigo publicado no Jornal O Povo, Caderno Vida & Arte, página 10

Domingo, 06 de Janeiro de 2002 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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Quando, ainda adolescente, subi no ônibus da Rápido Crateús para deixar Independência com a intenção de estudar e trabalhar em Fortaleza, meu pai encarou-me sutilmente e fez uma espécie de recomendação de despedida mais ou menos assim: “… e lembre-se, o que está dito é o que mais vale”. Passaram-se 25 anos e essa advertência não largou do meu pé um só instante. Vez por outra, quando me sinto agredido e confuso diante de alguma situação de quebra de palavra, recorro ao espírito incansável do seu Toinzinho. Com 80 anos de idade, ele não perde a esperança de que honrar a palavra continua sendo imprescindível.

Pequeno criador no sertão dos Inhamuns, repete sempre com o orgulho de um dândi apaixonado que criou e educou os três filhos com carneiro. Trabalhando, trabalhando, trabalhando. Acorda antes do sol e não pára o dia todo. Levanta com ar decisivo, pronto para as novidades do dia. É um homem cheio de reflexões tiradas das mais variadas intempéries. Alimenta-se da proteína dos conflitos para coabitar um mundo naïf no qual tenta oferecer perspectivas ao compromisso com o significado da palavra para a relação entre as pessoas. Cumprir com a palavra é, para ele, a condição elementar para a franqueza e, consequentemente, para a construção da confiança.

Conversamos por diversas vezes sobre as mudanças de valores que ocorrem em oito décadas de vida. Dos primeiros automóveis ao avião; do rádio ao computador; tudo se desenvolveu no período que abrange da sua infância à quarta idade. Ele compreende que todas essas mudanças causam transformações no comportamento das pessoas. Mas pela conotação que faz entre a palavra e o sentido da condição humana, não aceita a decadência do cumprimento de uma promessa verbal. Se para muitos a capacidade de falar é o grande diferencial de homens e mulheres em relação aos demais animais, para ele dignificar a palavra é a consagração dessa diferença.

Olho para o meu pai como quem aprecia uma bromélia. É um homem rústico e encantador, com folhas rígidas e cores bem delineadas. Crescido entre pedregulhos, num lugar desértico, floresce o ano inteiro sem depender de estações. Tira dos sucessivos episódios cotidianos representações sobre si mesmo, sobre a natureza e o jeito de se relacionar com ela, elevando a vida a uma consciência gótica rumo ao infinito. Como a beleza das bromélias, salta além de si mesmo pelo desejo inesgotável de busca das melhores formas de tornar a vida exemplar. E nada parece-lhe mais exemplar do que a semeadura da palavra cumprida.

Por oito décadas ele observa a vida atentamente, elaborando interpretações singelas mas bastante peculiares. Certa dia estávamos na sala de espera de um médico e ele, impassível, parecia uma escultura no sofá. Umas pessoas folheavam revistas outras viam tevê e ele sem esboçar qualquer movimento. Num determinado instante, percebo sua mão tocando o meu ombro. Ele se aproxima e comenta sussurrando ao meu ouvido: “A natureza tem mesmo muita ciência: o rosto de todas as pessoas só tem as sobrancelhas, os olhos, o nariz e a boca para fazer a variação, mas todas as pessoas são diferentes”. Era isso, ele não estava parado coisa alguma, estava admirando a grandeza dos pequenos sinais e dos gestos que contribuem para a riqueza da nossa diferença.

O ritmo estabelecido pela modernidade inibe a nossa paciência para a contemplação do mesmo modo que tolhe a força de honra da palavra. Felizmente meu pai chegou aos 80 anos preservando esses valores, transformando-os em anticorpos contra a síndrome da ousadia maliciosa que infesta o caráter de muita gente nos dias de hoje. A coragem de defender a obrigação em tudo o que se acerta oralmente tem incidência no senso de justiça e na qualidade de vida de cada um. Em muitas ocasiões ele tem sido derrotado por acreditar na virtude de que a cada um deve ser dado o que é seu. No balanço da existência o saldo de felicidade construída que temos herdado do seu estoicismo é digno de ser comemorado e compartilhado.

No seu enfrentamento quixotesco da vida, nunca aceitou a rendição compensatória de que a economia está acima da decência. Em matéria de finanças ele sempre esteve aperreado. Continua na linha da sustentação necessária. Uma das suas esparsas e minguadas fontes de renda é o aluguel de um ponto comercial em Independência. Há poucos dias liguei para ele dizendo que o locatário estava interessado na compra do imóvel. Rebelde e provocador perguntou-me se eu já havia dado a resposta. Disse-lhe que não, pois ainda não tínhamos falado sobre o assunto. E ele respondeu com uma pergunta: “Para fazer o quê com o dinheiro?”. Pelo visto ainda tenho muito o que aprender.