Para dizer como foi bom
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno3, pág.2
Quinta-feira, 06 de Setembro de 2012 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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Para ser bem-sucedida, a escolha de um destino de viagem deve estar vinculada ao que o viajante deseja sentir. Isso, considerando que uma viagem só é mesmo para valer quando a forma de viajar e os lugares escolhidos se alinham à expectativa do viajante. É o que se pode ler nas páginas de “SagAndina” (Independente, 2012), onde Augusto Rocha relata uma aventura sul-americana de motocicleta, na qual trafega sempre receptivo ao que encontra pelo caminho, mas revelando página por página o quanto a sua finalidade última é o próprio viajar.

O livro, que tem projeto gráfico de Geraldo Jesuíno, foi lançado na terça-feira passada (4/9), no Centro Cultural Oboé, em Fortaleza, com apresentação do advogado e empresário Aquiles Pontes. Em apontamento introdutório, o autor explica que “a viagem transcorreu sem nenhum acontecimento relevante, sem qualquer incidente grave digno de nota especial”. Este é o ponto de fusão entre o estado sólido da viagem e o estado líquido da aventura de Augusto Rocha, na simplicidade do seu intenso prazer de sair pelo mundo em duas rodas. Afinal, ele foi para Machu Picchu de motocicleta, rodando 14.800 quilômetros por terras brasileiras, peruanas, chilenas e argentinas.

As paradas, os indicativos dos mapas, os cuidados com a motocicleta, as citações de lugares e referências de paisagens e de pessoas são descritas com sabor de oralidade. Bom observador e anotador de detalhes, Augusto Rocha escreve como se quisesse que depois da última página o leitor parasse para pensar: “Ele foi lá mesmo”. E concluísse: “Foi e gostou”. Se esse for um querer do autor, dá para dizer que ele tem tudo para alcançar o objetivo residual das peculiaridades dessa experimentação.

Em suas 318 páginas, o livro revela uma viagem percorrida em sentido anti-horário pela Chapada dos Guimarães, Machu Picchu, deserto do Atacama e por outros lugares com disposição arquetípica para receber andarilhos que desejam tentar a plenitude prática como desfecho de viagem. Os percursos mencionados têm ligação com os movimentos da motocicleta e do motociclista, uma vez que nas curvas e na dança dos ventos e das chuvas, os dois são inseparáveis em seu espírito de aventura.

De motocicleta pela atmosfera livre das estradas, Augusto Rocha se apossa de si em uma lúdica alegria antropológica oferecida aos seus ancestrais nômades, que um dia se aquietaram em Oeiras. Tomam parte direta nessa diversão, os amigos Moacir e Sáris, a mulher Tahí, no trecho internacional, e figuras com quem eles vão se relacionando por onde se deslocam, a exemplo de Jeremy, o inglês conversador, da Elidiane, gerente de hotel no deserto, e de Joel, “laçador” de turistas em semáforos.

Na condição de servidor fazendário, o autor concedeu entrevista ao informativo da Associação dos Auditores e Fiscais do Tesouro do Estado do Ceará (Auditec, Ano 12, nº 3, p.8, mai/jun, 2012), no qual destacou que, a despeito das belas paisagens por onde passou o que de fato prendeu mais a sua atenção foi o povo: “O ritmo da viagem, um pouco mais moderado, permitiu maior aproximação com as pessoas (…) As imensidões territoriais permitiram a descoberta de culturas variadas e a cada dia tínhamos a oportunidade de conviver um pouco com essa diversidade”.

Soltos em tempo de férias da rotina de trabalho, seus pensamentos livram-se das convenções, misturando pérola negra em cantigas de roda e deixando a poeira sentar para a argamassa da vontade de espalhar como foi bom. Mais do que dizer dos lugares, Augusto Rocha quer narrar como escapou do cotidiano para se encontrar com a liberdade das rotas sem fronteiras à amplidão do olhar. E conta com imagens do colorido das araras que encontrou gozando dos seus direitos naturais ao céu azul, como lembrança concreta do usufruto da viagem.

O livro é cheio de tiradas boas entre minúcias compulsivas de afirmação da aventura. No momento em que o autor relata a tomada da direção de volta, escreve o seguinte: “…as percepções da sensação de estar em casa vão mudando de sentido à medida que nos aproximamos realmente de casa. Quando no Exterior, minha casa é o Brasil, se estou no Sul, minha casa é o Nordeste, se estou no Nordeste, minha casa é o Ceará e assim, sucessivamente, até eu poder deitar no fundo da minha rede”.

Esse desprendimento narrativo traduz bem o sentido de “SagAndina”, onde cada lugar, cada paisagem, cada pessoa citada tem semblante ofertado ao leitor como se fosse uma pedrinha colhida à margem do lago Titicaca ou “filetes de neve” do vulcão Licancabur, como poeticamente descreve Augusto Rocha. É assim, numa relação íntima associada às impressões tiradas de cada lugar, que o autor se mostra nos cenários de viagem. E faz isso de modo simples, sem esconder complexidades… e faz isso sem esconder dificuldades em seu esforço prazeroso.

A viagem no livro de Augusto Rocha é uma mistura de lugares visitados, com a maneira de viajar e a forma como isso tudo é contado. O autor junta intuitivamente essas três vertentes para o seu encontro marcado com o leitor; um encontro de olho no olho, de olho no retrovisor e de olho no horizonte de curiosidade de cada um. Em “SagAndina” pode-se sentir o quanto a escolha dos lugares foi adequada ao prazer da aventura e o quanto o percurso está visceralmente ligado ao prazer da viagem e da satisfação de contar.

O livro, mais do que uma forma do autor tomar consciência do que fez é um modo de dialogar com outros aventureiros e um jeito de dizer do valor da aventura para quem não entende o que tudo isso significa. Tem uma inocência na narrativa de Augusto Rocha, um apelo quase infantil ao estado de liberdade da brincadeira e à viagem despreocupada do brincar. Nessas situações, o menino, pequeno ou grande, cria um mundo de atenção à aventura para poder circular distante da norma geral, mas sendo receptivo ao que se passa ao seu redor.

Ele já viajou pelos extremos da terra, até onde é possível alcançar de motocicleta; ao ponto mais austral e ao mais boreal do planeta, ao sul da Patagônia e ao norte da Noruega. Daqui a três anos, quando completar 50 anos, Augusto Rocha pretende se presentear com uma viagem de motocicleta pelo continente africano. Está se preparando para isso. Sabe que é uma viagem cara e complexa, mas não vê a hora de colocar a jaqueta e o capacete e pegar a sua F800 GS (o modelo mais simples da BMW) para transformar na “projeção de um ideal de liberdade alcançada nos seus breves relatos de viagens”, como bem resume seu amigo e companheiro de viagem, Sáris Pinto, na orelha do livro.

A publicação de “SagAndina” é uma homenagem de Augusto Rocha ao amigo Louro (manobrista da garagem da repartição onde o autor trabalha), que estava muito doente quando a viagem a Machu Picchu foi iniciada em dezembro do ano passado. Augusto revela que Louro prometeu esperá-lo. E esperou por todos os 26 dias de duração da aventura. Entretanto eles não se encontraram, pois como o autor havia chegado muito cansado, deixou para visitar o amigo no dia seguinte e este faleceu de madrugada. E assim começa e termina essa história de amor à travessia.