Para entender as pesquisas
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Quinta-feira, 29 de Julho de 2010 – Fortaleza, Ceará, Brasil
É lamentável, mas eleição após eleição as pesquisas de intenção de voto migram do conceito de instrumento de informação democrática para o de instrumento de persuasão eleitoral. Disfarçadas de ciência objetiva elas adquirem mais e mais um aspecto de produto de lobistas, prejudicando qualquer ciência que exista na sua técnica. Ocultando ou falsificando dados, o empacotamento de conclusões quase sempre é direcionado aos interesses de quem as patrocina, direta ou indiretamente.
No livro “O fundo falso das pesquisas” (Editora Revan, 1996), a jornalista estadunidense Cynthia Crossen, editora do Wall Street Journal, já denunciava o quanto normalmente as pesquisas são concebidas com um determinado resultado a ser perseguido. Com perguntas que induzem e com interpretações que levam a verdades manufaturadas, esse condicionamento das pesquisas tem como consequência a corrupção da informação.
Os institutos de pesquisa produzem informações que são utilizadas nos mais variados processos de decisão, sempre partindo do princípio de que os números são elementos poderosos de convencimento. Quando atuam em campanhas eleitorais eles nem sempre são identificados pelas pessoas como empresas cujo negócio é vender uma mercadoria chamada pesquisa e cuja verdade capturada pertence aos que podem encomendá-la.
O primoroso trabalho de Crossen desvenda bem como o comércio das pesquisas fatura com informações estratégicas, respaldadas nessa noção que a sociedade tem de credibilidade nas estatísticas. As pesquisas seriam, digamos, compostas parte por informação e parte por propaganda. A costumeira superdivulgação de resultados positivos depende em muito do significado oculto contido nas informações veiculadas com o apoio dos números.
Consumidores e cidadãos somente tendem a reduzir o peso dado à informação que vem suportada por pesquisas e estudos, quando os números são muito discrepantes da realidade. Mesmo assim, mesmo desconfiando, ainda temos dificuldade de reagir à força da racionalidade técnica e científica apresentada pelos institutos. Entretanto, os exageros que vêm sendo praticados nesse negócio romperam com a aparente neutralidade e a credibilidade das pesquisas começa a oscilar na percepção dos eleitores.
Ao perverter o senso de realidade, a manipulação estatística, direcionada a erros e fraudes torna-se algo muito ruim para a democracia, à medida que se transforma em objeto de especulações comerciais do voto, perturbando, assim, o sentido de escolha. O fator “corrida de cavalos” comumente utilizado para mostrar visualmente quem está na frente, quando em muitas circunstâncias grande parte do eleitorado ainda se encontra indefinido, é condenável, principalmente quando a ilustração não está associada a uma análise esclarecedora.
Apenas a título de exemplo do que estou dizendo, vou tomar como parâmetro as eleições para as duas vagas cearenses ao Senado, na eleição anterior e na atual. Conforme registrei em meu livro “Mobilização Social no Ceará” (Edições Demócrito Rocha, 2002), em agosto de 2002, o candidato Tasso Jereissati (PSDB) apareceu nas pesquisas com 75% da preferência do eleitorado para a primeira vaga e a candidata Patrícia Gomes (então no PPS) chegou a figurar com 52% das intenções para a segunda vaga. Apurados os votos em outubro, ele só tinha 31,5% e ela 30,7%.
É uma diferença muito grande, em um pleito cujos adversários, Paulo Lustosa (PMDB) e Mário Mamede (PT), corriam descolados da chapa do candidato a governador, situação que tem tornado a vitória praticamente impossível na história recente das eleições para o Senado no Ceará. Não houve qualquer fato que justificasse uma queda tão brusca de percentual. Ou seja: não era bem aquilo. Provavelmente o que ocorreu com a insuflação do número é o mesmo fator que se repete agora, em agosto de 2010: Tasso Jereissati surge como líder da “corrida” nas pesquisas com 59% das intenções de voto, enquanto José Pimentel (PT) e Eunício Oliveira (PMDB) aparecem com apenas 24% cada um, embora os dois sejam declaradamente apoiados pelo governador Cid Gomes, candidato à reeleição, pelo candidato a vice, Domingos Filho, pela prefeita Luizianne Lins e pelo presidente Lula.
As pesquisas são lançadas ao eleitor como se não houvesse qualquer preocupação de ordem contextual ou mesmo preocupação com inconsistências e contradições. Os números aparecem como se não tivessem que levar em consideração questões de recall e de elevado índice de indefinição por parte do eleitor, com traumática Copa do Mundo pelo meio. Os resultados são divulgados com pontos percentuais, tabulações e margens de erro, mas não passam do que Cynthia Crossen classifica como ciência ligeira. “Na ciência propriamente dita, a pesquisa deve ser repetida e apresentar resultados idênticos. Mas, porque a opinião pública está constantemente mudando e as pesquisas jamais podem ser duplicadas, não há formas de verificar sua seriedade” (p. 110). E muitos institutos se valem dessa variabilidade para, de acordo com suas conveniências, mudarem de percentual como se estivessem mudando a preferência das pessoas.
Quando os votos realmente colocados nas urnas são contados e as diferenças entre o blefe das pesquisas mal intencionadas e a realidade aparecem, os institutos que se utilizam dessa prática deplorável se defendem surpresos, com a desculpa de que nada é certo no que concerne às preferências das pessoas. Alguns aceitam até ser acusados de terem feito perguntas mal elaboradas, mas não corrompidas; aceitam até a impropriedade de amostragem, mas como falha e não como fraude. Em caso de questionamentos, a palavra-escudo é “ajuste” e, como ajustes são decisões subjetivas legítimas ou não, “os pesquisadores podem empurrar e puxar um estudo para alguma direção que irá agradar ao patrocinador, sem pôr em risco sua integridade científica”, como argumenta Crossen (p. 28). Assim, estimulam o voto útil, reduzem o entusiasmo de militâncias e influenciam negativamente aqueles inclinados a apostar no cavalo que está ganhando.
Convém esclarecer que, assim como a jornalista Cynthia Crossen não vejo nada inerentemente errado nas pesquisas. Cada vez mais as metodologias e as técnicas estatísticas de captação de sentimentos estão mais aperfeiçoadas e melhores. O uso duvidoso desse instrumental, a intromissão capciosa em momentos de importantes decisões democráticas e a predominância excessiva no debate político é que tornam as informações inseguras e o processo eleitoral viciado. Embora as caixas pretas dos institutos registrem o número de entrevistados, quem realizou as perguntas e quando, e a margem de erro, não é fácil saber dos desvios por audiência de resposta, do desenho da amostragem e os fatores de peso, erros e tendências do entrevistador, a elaboração das perguntas, a ordem em que aparecem e as técnicas de controle de tendenciosidade.
Entender as pesquisas não é fácil. Faz parte desse negócio a mania de pressionar as pessoas a opinar, tendo elas ou não uma opinião formada. Esses resultados hiperbólicos que muitas vezes são publicados estão muitas vezes associados a essa pressão por uma decisão imediata. “Na vida real, decisões sobre assuntos importantes são em geral tomadas depois de conversas e troca de ideias (…) longe de ser o registro numérico da reação de algumas pessoas segundos depois de terem sabido de algo” (p.113). Por isso, precisamos aprender a duvidar dos números, a ver se eles batem com a nossa percepção. Do contrário, corremos o risco de consumir mercadoria estragada.