Para enxergar o país de dentro para fora
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3

Quinta-feira, 22 de Fevereiro de 2007 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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O carnaval de 2007 contou com a confluência de importantes eventos comemorativos, dentre as quais destacam-se os 100 anos do Frevo e os 90 anos do samba “Pelo Telefone” (Mauro de Almeida / Donga), o primeiro gravado no Brasil. Merece atenção especial também o contexto social e político brasileiro, que possibilitou uma intensa participação popular, com direito a encontros recíprocos dos governadores dos três maiores centros de manifestação carnavalesca do Brasil. Sérgio Cabral Filho (PMDB-RJ), Jaques Wagner (PT-BA) e Eduardo Campos (PSB-PE) estiveram juntos nos carnavais do Rio de Janeiro, da Bahia e de Pernambuco. Essa integração fortalece a teia da nossa maior festa popular e mostra a inclinação das novas elites brasileiras à criação de alternativas de integração para o País.

A palavra “frevo” foi publicada pela primeira vez, no Jornal Pequeno, de Recife, no ano de 1907, significando a dança carnavalesca improvisada e frenética que contagiava as ruas e os salões pernambucanos. A comemoração do centenário dessa folia foi de grande importância para estimular a nossa reflexão com relação à grandeza do nosso patrimônio imaterial. Foi inspirado numa apresentação em Salvador feita pelos frevistas recifenses das Vassourinhas, que Dodô e Osmar, com a participação de Aragão, criaram nos anos 1950 o trio elétrico, ao som de violões e guitarra amplificado por alto-falantes dispostos em cima da carroceria de um velho carro Ford sem capota.

Nas duas últimas décadas a chamada música baiana tomou conta do carnaval da Bahia e se espalhou por várias regiões brasileiras. Essa inflexão, que foi capaz de deslocar o eixo da folia momina, até então centrado no Rio de Janeiro, começou com a música “Fricote” e a dança “Deboche” de Luís Caldas, nos anos 1980. Depois veio o samba-reggae do Olodum e nasceu a Axé Music. Em Salvador, os blocos e os trios elétricos seguem em permanente reinvenção. Daniela Mercury desfilou este ano com um trio elétrico de três andares e convidou artistas como Zé Ramalho e Chico César para fazer uma grande homenagem à cultura brasileira, com o tema “O Brasil dos meus sonhos”.

No Rio de Janeiro, a Império Serrano, que é de 1947, completa 60 anos e faz um belo desfile voltado para a questão de que “Ser diferente é normal”. Um tema especialmente brasileiro. Ver o mundo assim é bem mais fácil quando se olha a partir da nossa vantagem mestiça. O contrário nem sempre é possível. Basta lembrar que há 80 anos, em 1927, o escritor e jornalista inglês Rudyard Kipling fez a cobertura do carnaval do Rio de Janeiro para o jornal Morning Post e não entendeu nada. O prêmio Nobel de literatura de 1907, autor de “Mogli, o Menino Lobo”, ficou encantado com a farra de confetes e serpentinas, com a beleza ensolarada da paisagem, mas concluiu que a nossa natureza é tão exuberante que inferiorizou o homem.

Anos antes, em 1923, foi lançada nos EUA a música “Yes, we have no bananas” (Frank Silver / Irwin Cohn), que fazia gracejos com um grego que tinha uma banca de frutas que vendia tudo menos banana, mas que ao ser perguntado se tinha a fruta da bananeira sempre respondia afirmativamente para depois dizer que não: “Sim, não temos nenhuma banana”. Essa piada musical se espalhou pelo mundo e nos motejos que alcançou reforçou uma ironia estadunidense de que na América hispânica e portuguesa só existiam repúblicas de bananas. Ao chegar no Brasil, o escárnio ianque recebeu o troco com a marchinha “Yes, nós temos banana” (Braguinha / Alberto Ribeiro), de 1937, para o carnaval do ano seguinte, na qual os autores replicavam que temos banana, sim, mas temos também outras riquezas como o café e o algodão. Essa brincadeira está fazendo 70 anos.

Com todos os problemas que ainda temos, observando bem o Brasil de hoje, podemos ver o quanto nos distanciamos positivamente da visão estigmatizada de Kipling, Silver e Cohn. Invenções brasileiras como as de agroenergia, que podem dar grande contribuição de biocombustível a um mundo devastado pela estupidez imperialista européia e norte-americana, atestam que a situação não é bem assim, quando nos vemos de dentro para fora. O Brasil tem muitas limitações e muitos defeitos a serem corrigidos, não há como negar, mas o pior deles ainda está no modelo mental transplantado pela violência colonial às nossas falsas elites econômicas, sociais, artísticas, políticas, acadêmicas e de comunicação, aos brasileiros que se sentem com o umbigo fora do Brasil.

Ao se olharem no espelho, essas “elites-capacho” se vêem como fiéis intermediárias dos interesses externos no Brasil. Aceitam-se de fora para dentro e, assim, não conseguem se imaginar promovendo o desenvolvimento do País em sua plenitude. A evidência dessa situação está no preconceito com que encaram as transformações que estão ocorrendo na vida brasileira. Por seguirem, sem pestanejar, as vulgatas dos seus preceptores, reagem em razão ofuscada a tudo o que denota redução no quadro de desigualdades que ajudaram a produzir. Estão incomodados com a inteligência popular que transforma o Brasil lentamente, sem arroubos populistas.

Enquanto isso, o País segue atravessando o deserto do neoliberalismo e se esquivando de suas estatísticas corrosivas. Nessa caminhada, começam a florescer aos trancos e barrancos as nossas elites legítimas, velhas ou novas, de direita ou de esquerda, porém com aptidão para inserir o Brasil no mundo globalizado a partir do jeito de ser, de pensar e de querer das suas gentes. As falsas elites se intimidam com essa realidade. Em linhas gerais, pode-se dizer que diluímos a dicotomia direita e esquerda para experimentarmos um empirismo democrático, frágil em sua arquitetura institucional, mas forte e consistente em sua essência de brasilidade. Neste cenário, o que distingue as falsas elites das elites legítimas é a angulação do olhar. Legítimas são as que estão aprendendo a enxergar o País de dentro para fora.

A emancipação social pressupõe um mínimo de valorização cultural, conhecimento, distribuição de renda, capacidade de organização e noção de destino, ou seja, ter as condições básicas de uma sociedade civil. O encontro dos governadores do carnaval sinaliza para novos parâmetros de integração nacional, que fogem dos padrões tradicionais das regiões geográficas, do peso econômico e das características climáticas. O contexto brasileiro pede esse tipo de novidade integradora. Movimentações que podem ser feitas abrangendo os agentes das nossas reservas ecológicas, das grandes romarias, das concentrações urbanas e dos vazios demográficos. Como essas, existem tantas outras experiências sociais e culturais enriquecedoras e aglutinadoras da nação e fortalecedoras da razão de ser do País.