Parábola da médica cubana
Artigo publicado no Jornal O POVO, Caderno Vida & Arte, pág.4
Quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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FAC-SÍMILE

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O caçador de casos para a fabricação de factoides políticos teve dificuldades, mas finalmente encontrou no programa “Mais Médicos” alguém para transformar em herói ideológico. A médica cubana que caiu na camuflada rede de caça do desvario partidário da direita brasileira foi encontrada no município amazônico de Pacajá, no sudoeste paraense, onde há quatros meses trabalhava juntamente com outros seis colegas da área de saúde no atendimento a uma população de quarenta mil habitantes, em uma região de difíceis acessos rodoviários e fluviais.

Ramona Rodríguez, 51, não largou os pacajaenses por precariedade na estrutura de trabalho ou porque o lugar para onde foi designada está localizado no meio da floresta de clima quente e úmido. É provável que, como tantos outros de seus compatriotas, tenha saído do seu país com a segunda intenção de fugir para os Estados Unidos. Ela tem a idade do embargo econômico imposto pelos estadunidenses a Cuba e, por meio século, foi instigada pela propaganda invasora da “terra das oportunidades” a atravessar os cerca de 150 quilômetros de mar que separam a ilha socialista do caribe do mais poderoso país do mundo.

Não dá para imaginar a força de um dilema dessa proporção nas convicções, desejos e necessidade das pessoas. Entretanto, agindo de má-fé e oportunismo, é possível lançar mão dos hiatos de consciência gerados por essa situação embaraçosa para tirar proveito político, como está fazendo o DEM, partido da direita avarenta que, no intuito de desgastar a imagem do governo federal, expõe de modo vexatório um programa de tamanha importância para a população brasileira desassistida de médicos nas periferias das cidades e no interior do país.

Cuba está oferecendo ao Brasil um auxílio humanitário de grande valor, com profissionais preparados para trabalhar em condições adversas e com poucas ferramentas tecnológicas, atuar nas Unidades Básicas de Saúde e realizar visitas domiciliares das regiões consideradas pouco atraentes. Os médicos cubanos são conhecidos por sua formação voltada ao atendimento clínico e familiar, com ênfase na prevenção de doenças. Para alguns médicos brasileiros, a presença dos colegas cubanos também se constitui em um dilema entre a consciência do juramento de consagrar a vida ao humanismo e a medicina de negócios.

Esse descontrole da honradez motivou constrangedoras manifestações negativas ao “Mais Médicos”, quando da chegada dos primeiros profissionais do programa a Fortaleza. Combinando insegurança e egoísmo social, um grupo de médicos vaiou os colegas, xingando-os de escravos, por aceitarem participar da missão de ocupar os postos de trabalhos ociosos e cuidar dos brasileiros desvalidos, em uma circunstância de remuneração que entra em choque com os interesses financeiros dessa parte da categoria. Essa fobia moral, demonstrada pelo corporativismo, expressa, no fundo, um temor de que um maior compromisso dos médicos cubanos chegue a ameaçar as vantagens que conseguiram.

Ora, os médicos cubanos estão no Brasil em uma tarefa de cooperação internacional, legitimada por um convênio endossado pela Organização Pan-Americana de Saúde (Opas), instância da Organização Mundial de Saúde (OMS) para as Américas. A natureza da relação permite que os profissionais cubanos atuem seguindo a noção de contrapartida da sua cultura; ou seja, se eles foram formados em um sistema de saúde e educação públicos e gratuitos, nada mais justo do que retribuir à sociedade cubana parte significativa do seu ganho para que outros possam continuar tendo as mesmas oportunidades.

Isso é mesmo difícil de ser entendido em um país como o Brasil, onde, via de regra, os recursos públicos servem a benefícios privados. Embora cubanos e brasileiros tenham empatia fraterna mútua, suas realidades, histórias e contextos políticos, sociais e econômicos são muito distintos. É da dificuldade de compreensão dessas diferenças que se valem os fabricantes de factoides. Os médicos cubanos sabiamente não têm dado entrevistas, mas quando falam dizem claramente que mais importante do que dinheiro é poder ajudar os brasileiros que precisam de cuidados médicos. Falam como se cantassem a música “Por quem merece amor”, de Sílvio Rodriguez: “Meu amor não é amor de mercado”.

É uma postura que perturba e provoca reações virulentas. Não é à toa que toda uma carga de preconceitos foi jogada sobre a dignidade dos médicos cubanos. As mídias tradicionais e as redes sociais estão cheias de insultos vergonhosos: “O Brasil é a chance do pé-de-meia dos cubanos”, dizem uns; “As médicas cubanas têm a cara de empregadas domésticas”, repercutem outros; há os que classificam de “esmolinha” a retribuição financeira que estão recebendo; e para baixar o nível de uma vez, chamam de “vale-coxinha” a ajuda de custo que recebem das prefeituras onde atuam. E, diante de tão extravagante “receptividade”, ainda há quem pense que a Dra. Ramona está caindo fora do Brasil apenas por motivos de desconforto com a política de seu país.