Passear é muito bom
Artigo publicado no Jornal O Povo, Caderno Vida & Arte, página 12
Domingo, 28 de Abril de 2002 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Impulsionado pela compreensão de que viver é efetivamente agir e tomar consciência da própria existência pela sensibilidade, pelo pensamento e pela ação, o filósofo Karl Gottlob Schelle (1777 – 1825 aprox.) escreveu em 1802 uma bela obra dando lugar de destaque ao passeio na arte plena da vida. O discernimento do autor no que diz respeito à nossa relação com a natureza, na medida das nossas próprias sensações, é algo profundamente oportuno e necessário nesses dias em que muitas pessoas vivem limitadas a caminhar em esteiras e a viajar para conhecer shopping.
O livro apresenta diferentes cenas naturais e culturais, com passagens por jardins, mares, montanhas, vales, campos, florestas e pradarias. Schelle engendra também uma certa sedução incidental com impressões estética de outros pensadores. Comenta o canto dos pássaros e aduz a música nos parques como evocação à noção de mundo ideal possibilitada pelos passeios em sociedade. Com foco na natureza e nas áreas públicas de lazer ele sacode a imaginação tempo à frente e alcança as nossas urgências cotidianas. “É incontestável que os passeios públicos de uma cidade podem ser incluídos no rol das necessidades essenciais da vida social”. Sua dedução avisa que numa cidade bem situada, bem delimitada e bem administrada, as pessoas se encontram sempre em saudáveis espaços coletivos.
Para o autor de A arte de passear, o passeio em si não existe, ele é tão distinto quanto os lugares que se procura para passear. Assim sendo, é a disposição do espírito que, movido pelo prazer desinteressado, inscreve o passeio na arte de viver. Este aspecto do seu pensamento é interessante porque coloca o passeio a um só instante como local e maneira do passeante flanar coletivamente, apenas sendo receptivo e aberto, sem se violentar com análises idiopáticas. Mais do que uma atividade física passear é um exercício intelectual de observação ingênua destituído de coerção racional.
Os encantos de Schelle pelos Passeios Públicos tinham como modelo os jardins, bulevares e alamedas parisienses, na condição de “refúgios ao olhar e ao coração”. Tinham como impacto espiritual e físico a harmonia entre a mente e o corpo. Para usufruir de lugares bem arborizados, não apenas freqüentados por pessoas conhecidas, é preciso ter a capacidade de despertar o interesse pela natureza e pelo outro, sem se perder em considerações sobre os costumes de cada um. Na ponderação do filósofo, aquele que fica o tempo todo reparando o jeito do outro se vestir e de se comportar submerge no próprio humor barato e tem pouca probabilidade de ser capaz de passear na companhia dos outros.
O uso prazeroso dos espaços públicos é sinônimo de civilidade em A arte de passear. A humanidade refinada aproxima-se da vida e bebe na fonte de satisfação da cidade compartilhada. “É preciso ser culto para usufruir do passeio (…) Um indivíduo comum que não tenha cultivado seu espírito não sente necessidade de passear”. Passear, neste caso, não significa apenas movimentar o corpo, como simples fenômeno físico, como se o espírito ficasse em repouso enquanto o corpo se mexe. Pela ação do corpo, o passeio coloca em movimento os mecanismos do espírito.
O interesse do passeante pela natureza e pela companhia pública de outras pessoas, deveria ser prioritariamente de ordem estética, segundo Schelle. E para que se consiga alcançar esse estado de ingenuidade do coração e da alma, ele defende que a primeira condição é sentir-se livre. Inclusive do compromisso com as aparências. Passear é a liberdade de ir ao encontro da vida e de ser receptivo às coisas que nos rodeiam, desprovidos de interesses por demais intensos, “afastar-se do mundo sem dele fugir”.
A necessidade da relação direta dos seres humanos com a natureza, mesmo em condição de urbanidade, é ponto pacífico no discurso do pensador. “Não basta ler muitas descrições da natureza para poder beneficiar-se de sua influência. As descrições não são a própria coisa”. Nas páginas de “A arte de passear”, o autor trabalha a acolhida das diferentes impressões que os variados passeios provocam. Coloca em planos diferentes a opção do passeio em meio a outras pessoas, na natureza, a pé, a cavalo ou de carro. Cada qual com seus prazeres especiais, demonstrando que passear, mais do que uma sucessão de vagares é uma indispensável situação de sociabilidade ensejada pela prática da diversão renovável.