Paz: substantivo feminino
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3

Sábado, 03 de Setembro de 2005 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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Mais do que parte da função de equilíbrio, que os filósofos taoístas chamaram de Yin e Yang, a feminilidade guarda um segredo futurista em sua manifestação dos fenômenos da vida. É através dela que está a chance de superação do processo crescente de violência que atordoa a humanidade. O modelo masculino está esgotado. Pode ter tido a sua razão de ser, quando os seres humanos primitivos precisaram do princípio masculino para escapar da seleção natural e para se reconhecer em muitas circunstâncias históricas definidas pela lógica da guerra. A lança primitiva, a espada medieval, o canhão da Idade Moderna e os mísseis “inteligentes” da pós-modernidade são representações tecnológicas da capacidade masculina de evoluir.

A sofisticação do poder destrutivo das armas vem levando o Planeta a uma situação de insustentabilidade. É hora de recorrermos aos atributos femininos dos seres humanos, homens e mulheres, como possibilidade de inversão dos padrões evolutivos. A explosão demográfica, a expansão dos conflitos geopolíticos e a sedimentação da cultura do individualismo produzem novas experiências de seleção natural entre pessoas. Os apocalípticos voltam a apostar que a paz é uma ilusão e que o fim está próximo. Dar luz ao futuro vai ficando cada vez mais crítico.

A escritora francesa Elisabeth Badinter alerta em seu livro “Rumo Equivocado” (Record) para a propensão do acirramento das disputas de gênero, sem um verdadeiro respeito às diferenças (Revista Entre Livros, ago/2005, Ed. Duetto). Ela atribui o que considera um engano do processo de evolução da participação feminina à prevalência do discurso falacioso do feminismo estadunidense, que coloca a mulher numa situação de vítima do homem e não pelo viés da igualdade. Badinter acredita no afeto constituído na convivência e por isso coloca a paternidade e a maternidade em um mesmo plano de conquista.

Essa talvez seja uma chave. Está provado que a rota do embate faz parte do padrão mental masculino. A jornalista, escritora e deputada cearense-carioca, Heloneide Studart, está entre as pioneiras do feminismo que “defendem a teoria de que é preciso feminizar o mundo para torná-lo mais distante da barbárie mercantilista e mais próximo do humanismo” (Artigo “O poder desarmado”. Jornal do Brasil, 6/2/2001, Opinião). Muitas atitudes agressivas foram necessárias para chamar a atenção da importância da força da mulher na construção do mundo. Alguém precisa cuidar do espólio da primazia do macho e gerar novas chances de permanência para a humanidade. Os recursos do planeta já não suportam mais esse modelo. O momento é de busca do equilíbrio dinâmico, de elevação do feminino nos seres homens e mulheres em uma relação de grandeza.

O choque compulsivo de personalidades não é mais uma questão de gênero, na vertigem de uma sociedade de pessoas cada vez mais solitárias e desesperançadas. Os instantes estão suspensos no tempo dos desejos induzidos. A noção de amor no consumismo não consegue se libertar dos sofrimentos psíquicos relacionados ao individualismo e à competição sem regras visíveis e sem reta de chegada assinalada por parâmetros estáveis de convivência. O feminino transcende à dureza do preconceito, da desigualdade e da destruição desse cotidiano em situação de insolvência. Se a maior concentração do princípio ativo do feminino está na mulher, não há dúvida de que precisamos sublimar essa qualidade para o estabelecimento da paz no mundo. A paz é um substantivo feminino.

Quando o compositor Tom Zé canta que “amar é ser a casca pro outro viver” está nos incitando a enxergar através das cortinas, das paredes e de todas as blindagens do jogo da vida. A tentativa de desapego ao outro, exercitada na transferência consciente ou não das novidades do mercado, jamais nos deixará alcançar a paz. Somos indivíduos predestinados ao amor. E amar implica a existência de encontros e desencontros. Conflitos que podem ser instigadores da cordialidade e da amabilidade resultante da aplicação plena dos valores humanos universais. A recriação do amor como uma sensação agradável do corpo, da mente e do espírito para os tempos atuais é uma tarefa que não pode mais prescindir do plasma da feminilidade.

O fenômeno cultural permite pontos de semelhança entre as mais distintas dimensões da nossa realidade. Isso faz com que, para enxergar uma determinada situação, muitas vezes seja inevitável olhar para outra. Comparar ajuda a flexionar nossas resistências de assimilação. Vejo a necessidade de alteração de dosagem do masculino para o feminino em nossas vidas como quem, por exemplo, observa os avanços da física. A estrutura do raciocínio masculino está para a física tradicional como o modo de organizar o pensamento do feminino está para a física quântica. Um, vê o mundo por meio da mente matemática e das leis fundamentais dos campos e dos sistemas materiais, enquanto o outro, observa a vida na combinação de partículas cósmicas e dos princípios das probabilidades. A nanoessência dos sentidos femininos refinou ao longo da história os mistérios do consentimento diante da intolerância.

Em uma figura de síntese talvez seja possível desenhar a evolução da mulher em três avanços sociais e culturais: um, que simplesmente a introduz no universo masculino; outro, que dá a ela a condição de explorar ainda que reservadamente a sua própria natureza; e um terceiro, o mais complexo e mais difícil de ser conquistado, que é o da inversão do modelo mental dominante, para que a mulher possa assumir o seu papel de mensageira da paz. Como dinamizar esse poder é uma incógnita a ser tratada com urgência. O conjunto de crises a que o mundo está submetido não deixa de ser um terreno fértil para a fundamentação desses novos sentidos existenciais.

Resta uma crença numa outra maneira de ver o mundo que está na pulsão do feminino. Resta revelar o que ainda está oculto na movimentação silenciosa de outras verdades, de outros parâmetros de confiança e de outros jeitos de conviver. Precisamos parir um novo mundo, não tratando a maternidade como uma tarefa de gênero, mas como uma questão de cuidado compartilhado. É o caminho para o reconhecimento da legitimidade do outro, para uma nova ética e uma nova estética cultivada com base no princípio feminino dos seres humanos. E quem melhor dispõe da habilidade de aplicação dessa sabedoria é a mulher.