Há meia dúzia de anos um grupo paulistano vem chamando a atenção pelo estilo com o qual desenvolve uma música de interseção estético-existencial da solidão, do trágico, do banal e da falta de perspectiva no caótico mundo urbano. O Passo Torto, formado por Kiko Dinucci (guitarra), Rodrigo Campos (guitarra e cavaquinho), Romulo Fróes (violão) e pelo alagoano Marcelo Cabral (baixo acústico) tem pegada abrasiva e repertório autoral em poética de estranhamento.
Com discos experimentais de concepção acústica ou eletrificada, a sonoridade desse coletivo prima pelo rascante em tramas que desacomodam. Em A Música da Mulher Morta (Dinucci/Fróes), eles dão o tom amargo de uma narrativa ruidosa: “Passei na frente da sua casa / A porta aberta / Janela trancada // A rua deserta // Seu corpo coberto // Não sei se foi número certo / Não sei se foi na hora errada”.
Cada composição remete a um ato que se dissolve arranhando na síntese da natureza contraditória da realidade, em discursos de loops e riffs sujos e textura de guitarras distorcidas zunindo reflexões ativas, sem descanso, em uma oposição de cunho impetuoso e instintivo a um sistema social baldio, travado em sua carência de aceitação.
O quarteto paulistano é de boa liga, embora seus integrantes tenham personalidades artísticas diversas. Fróes, que pisou “no chão sem o chão”, Dinucci, que pintou “o retrato do artista quando pede”, Campos, que observou “assim tão longe”, e Cabral, que descobriu o tímpano do “nó na orelha” do Criolo, são músicos e compositores que resolveram experimentar a si mesmos e uns aos outros nessa interexperiência que passaram a chamar de Passo Torto.
É bom ver um grupo que, por meio de trocas e reciprocidades, busca complementaridade e sentido comum, cada qual confirmando o outro em forma, estilo e inquietação. Esse espírito de atração por atitude faz com que o Passo Torto tenha uma pauta de atmosfera musical instigadora de respostas que muitas vezes dificultam desambiguações. Transita pelo prazer da catarse do melódico em desacordes e guitarras punkeadas, que afirmam e negam sentimentos e emoções contrastantes do que pode ser reversão perceptiva, imaginativa, fantasiosa, transcendental, mnemônica e onírica.
Na quarta-feira passada (15), meu filho Lucas e eu vimos na Casa de Francisca, no centro de São Paulo, um momento da interpraxis do Passo Torto com a sempre admirável cantora Ná Ozzetti. Um show em que a capacidade de discernimento perceptivo tende a se perder em diferentes gradações de dissoluções da canção; um espetáculo imanente em sua razão dialética entre o que se escuta e o fato de escutar.
O Passo Torto farisca rastros vanguardistas, mas tem pegadas próprias no ressignificado que imprime ao samba metropolitano do paulista Adoniran Barbosa (1910 – 1982), do paulistano Paulo Vanzolini (1924 – 2013) e do baiano Tom Zé. Seja espalhando o encarnado de Juçara Marçal ou com Elza Soares no fim do mundo, esse grupo já conquistou destaque nas contribuições de São Paulo que mexem com condicionamentos da música brasileira, onde estão o Premê e sua Empada Molotov; o dodecafonismo de Clara Crocodilo, do paranaense Arrigo Barnabé; o diletantismo bem humorado do Rumo; e tangencia a Sampa Midnight de Itamar Assunção (1949 – 2003), por onde segue viva a Isca de Polícia. Acho que foi número certo!