Pela floresta para achar a estrada
Artigo publicado no Jornal O POVO, Caderno Vida & Arte, pág.6
Quarta-feira, 20 de novembro de 2013 – Fortaleza, Ceará, Brasil
FAC-SÍMILE
Augusto Rocha é um piauiense que trabalha como servidor público no Ceará. Recentemente fez uma viagem de motocicleta pela rodovia Transamazônica de ponta a ponta, desde Cabedelo, no litoral da Paraíba, até Lábrea, nos confins da floresta amazônica. E publicou um livro no qual a viagem em si é mais importante do que os lugares por onde passou. Em seu relato, o destino é um motivo e a paisagem um fetiche para o deslocamento, pois o que acontece a cada instante durante o percurso é que é o ponto de atenção da narrativa.
Mais do que acompanhado pelos amigos Verô (de Oeiras), Sáris (de Fortaleza) e Manga (de Maceió), o autor convida o leitor a ir na garupa, vendo cada trecho dos 4.223 quilômetros percorridos da BR-230. As fotografias que ilustram o livro são pontos de prova da trajetória. Como se com as imagens quisesse dizer apenas “Está vendo, passamos mesmo por aqui”. As fotos são em preto e branco e com efeitos gráficos que dão aos quatro amigos o visual de um quarteto de histórias em quadrinhos. E ele reforça tudo em tom heroico, inspirado na superação do risco e nas tentações de desistências: “Foi mais difícil e sofrido do que eu imaginava, mas me sentia vitorioso” (p. 206).
O autor já rodou de motocicleta por territórios que chegam ao extremo sul da América do Sul e ao extremo norte da Escandinávia. Sua vontade de percorrer o mundo de moto é atribuída por ele à circunstância de desterrado em que se meteu desde que deixou Oeiras (PI) para trabalhar e fixar residência em Fortaleza (CE): “Morando há 20 anos longe de minha terra, perdi parte do vínculo telúrico, sem, contudo, criar raízes no lugar onde moro” (p. 53).
Embora centrado no ato da viagem, vez por outra ele deixa escapar referências de lugares: “Chegamos a São Domingos do Azeitão, quando, enfim, encontramos os chapadões maranhenses, onde se produz, atualmente, bastante soja” (p. 87). Ao relatar um protesto de agricultores que bloquearam uma ponte em Anapu (PA), ele diz da cidade: “Esta ficou internacionalmente conhecida no ano de 2005, quando uma freira yankee, naturalizada brasileira, chamada Dorothy Stang, foi assassinada” (p. 110).
Lançado no sábado passado, 16/11, na Casa das 12 Janelas, em Oeiras, “Carregadores de Melancias” (Expressão Gráfica, 2013) tem um primoroso projeto gráfico do professor Geraldo Jesuíno e transpira o espírito do motociclismo. Com narração na primeira pessoa, mas sempre atento aos companheiros, pelos quais demonstra grande respeito e amizade, o autor fala dos preparativos, das dificuldades com os caminhões, dos trajetos perigosos, de poeira e lama, de lajedos escorregadios, de pedágio ao cruzar reservas indígenas, dos cuidados com a motocicleta e da emoção do viajar.
No entanto, a diligência com o processo não dispensou o realce de momentos bem humorados, como na vez em que, entre Apuí e Humaitá (AM), um touro fechou a ponte e ficou a encarar por um bom tempo um dos integrantes do grupo. Augusto salienta também momentos de companheirismo, a exemplo do dia em que no município de Jacareacanga (PA) sentia muitas dores no ombro, por conta de uma queda da moto: “O Sáris estava disposto a abdicar do projeto para ficar comigo, mas não achei justo ele fazer o sacrifício por mim” (p. 164).
O périplo descrito pelo autor passa ainda pelos 850 quilômetros do trecho da BR-319, que liga Lábrea a Manaus, onde ele, sozinho, toma um barco de volta para casa, pelo rio Amazonas. É na monotonia dessa embarcação que ele se abre às lembranças. Como protagonista narrador, ele passa a contar tudo com sensação de alívio. Daí o título “Carregadores de Melancia”, uma metáfora tirada de uma história que certa vez ouviu de Cineas Santos, em Teresina (PI): em um dia de lazer, o poeta havia comprado uma grande melancia para saborear às margens do rio Parnaíba e no caminho deixou-a cair. Vendo aquela delícia espatifada no chão, mais do que lamentar, percebeu que tinha se livrado de um pesado fardo (p. 187).
Entremeado por recordações relâmpago, o livro de Augusto Rocha recria a ação como fuga da rotina, virando pelo avesso o comportamento linear, desdobrando-se em uma série de situações onde cada detalhe e cada instante são elos de uma corrente de tração, cuja razão de ser é a travessia. A viagem é intensa, mas não chega a ser extravagante. Embora o autor afirme categórico que não faria tudo novamente (p. 278). O lugar ocupado pelo autor é o da aventura pelo prazer do aventurar-se, pela satisfação da observação do que se passa pelo caminho, enquanto redefine-se como cruzador de fronteiras do si.
Augusto maneja bem seu relato entre a adrenalina e a paciência. O texto, divertido e aventuroso, tem a leveza da contação espontânea. Nada de ficção, o real se basta em sua fala. O flashback quebra a linearidade da história, rodeando o autor de fatos que dão intensidade à narrativa. Ao passar a sequência da ação de um espaço tópico para outro, seu monólogo interior revela que cruzar a Amazônia em duas rodas foi um modo de escapar da rotina urbana, mas também uma forma de provar para si que consegue achar a estrada.