No decadente mundo em que predominam a acumulação desnecessária, a riqueza ilícita, a ostentação e o privilégio como valores, o racismo crônico e a injustiça social generalizada, é fundamental repercutir mais e mais experiências exitosas de estilos de vida que sinalizam para novos quereres, novas formas de viver e novas práticas políticas. É preciso sair catando essas raras ofertas, visto que a sobrecarga de informações sobre as pessoas nos tempos atuais perturba o exercício do olhar crítico e estimula o ativismo frenético da desesperança.
O documentário “El Pepe – Uma Vida Suprema” (Netflix), do cineasta sérvio Emir Kusturica, 65, é uma dessas raridades que merecem atenção, por compartilhar revelações pessoais de José Mujica, 85, desde os motivos da sua ação guerrilheira até os feitos da sua gestão como presidente do Uruguai (2010 a 2015). Bem-humorado e com expressiva simplicidade, o entrevistado mostra que a profundidade da alma e a síntese de grandeza humana estão na crença que se pode ter no outro, na capacidade de encarar a vida com ternura, na disposição para interferir no destino, na sabedoria de viver com o necessário e na consciência da busca permanente por um mundo melhor.
Kusturica fica a maior parte dos 74 minutos do filme em silêncio, apenas olhando para Mujica, como que convidando o telespectador a fazer o mesmo, a escutar com encantamento essa figura que eleva a dimensão política ao relacionamento do social com o natural e à irmandade dos humanos e não humanos. Entram nessa roda o famoso fusca azul, os animais do sítio onde mora nos arredores de Montevidéu, a plantação da escola agrária que cultiva no quintal e os demais habitantes do planeta. A trilha sonora é intercalada por tango do Rio da Prata e pelo cantar de um grupo de murga que ao longo do filme se desloca em um caminhão até o instituto comunitário criado por José Mujica, onde deixará todos os seus bens para usufruto público.
Quando chegar esse dia, José ‘Pepe’ Mujica terá provado que foi possível cumprir com o seu ideal, de viver “a favor da vida, e não contra a vida”. E terá feito isso sem apegos a posições dogmáticas que impedem a abertura para alternativas. No documentário ele afirma que “a batalha cultural é a batalha que não lutamos”, considerando cultura “a rotina dos valores que temos na vida”. Com seu aprendizado de fracassos e conquistas em uma existência desafiadora, Mujica reflete que a construção de um mundo menos desigual e mais justo passa efetivamente por transformações culturais. Para ele, um pacto de convivência em favor de uma humanidade melhor depende da importância dada à questão cultural, talvez “mais do que a questão material”.
Se pensar no caminho é tão importante quanto pensar no destino, para José Mujica a sociedade precisa estar atenta a uma chave da política: “Os melhores dirigentes são aqueles que, quando se vão, deixam muitas pessoas que são melhores do que eles mesmos”. O que, segundo o líder uruguaio, desandou nas mudanças experienciadas na América hispânica e no Brasil foi a dificuldade dos socialistas de limitarem a sedução do capitalismo, perdendo assim a oportunidade de descobrirmos outra forma de ordenamento social e econômico. “Na América Latina não há respostas, há busca”, diz com a firmeza de quem se reconhece nessa busca.