Personagens e leitores nas ruas de Aracati
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Sábado, 29 de Outubro de 2005 – Fortaleza, Ceará, Brasil
A maioria dos comentários que ouvi sobre a 1ª Festa do Livro e da Leitura de Aracati, realizada de 12 a 15 deste mês, me pareceram interpretações viciadas em parâmetros dos eventos literários tradicionais. Esse tipo de limitação do olhar me inquieta porque reduz o alcance da ação cultural no Ceará. O que aconteceu em Aracati não foi uma feira, foi uma festa e isso muda completamente as bases de relação dos participantes entre si e com o livro. A festa é muito mais do que lançamentos de best-sellers e comércio de publicações. A festa é uma possibilidade de encontros, gestos, idéias e articulação de distintos públicos em seus universos de conhecimento e expectativas.
O maior mérito da festa é a aproximação das pessoas, tendo o livro e a leitura como elemento aglutinador. Isso rompe com o lugar-comum e repropõe novas experiências sensíveis e intelectuais. Adultos e crianças, jovens e velhos puderam tocar, folhear e até ler livros e mais livros, em um fervilhamento capaz de calar qualquer teoria de que as pessoas não gostam de literatura. E mais, um fervilhamento denunciador da sede de livros e da necessidade de mais condições de acesso à leitura. A festa foi um fato literário em si. Como numa instalação, senti-me dentro de um livro vivo como todo bom livro deve ser. Personagens e leitores caminhando juntos no desafio da interpretação das suas próprias referências.
Quem quer que tenha querido sentir a grandeza daquele acontecimento acabou virando parte de uma história de aventura, suspense, drama, comédia ou simples paixão pelos livros e pela vida. Tom Zé, no azucrinado show de encerramento, fez uma paródia de “Ogodô 2000” cantando “Aracati, Aracati, Aracati” e a praça toda se mexeu, com direito a refrão “ti-lic-til / livros a mil”. A festa deu espaço para as potencialidades criativas das crianças, para debates com autores e leitores, para ventilar literatura entre reggae, forró e cultos evangélicos na urbanização de Canoa Quebrada, para chamar a atenção dos cataventos de carnaúba e das labirinteiras do Cumbe e para contemplar a poesia das águas do rio Jaguaribe.
Aracati é uma cidade de muitos valores que precisa ser reorganizada em sua dimensão histórica e cultural. É terra de personagens importantes, tais como o jangadeiro abolicionista Dragão do Mar (1839 – 1914), o escritor Adolfo Caminha (1867 – 1897) e da artista plástica Nice Firmeza (1922). É terra das oficinas de carne e da exportação de couro no ciclo do gado; entreposto do algodão e da cera de carnaúba, terra da cerâmica, do turismo e do camarão. Sobrados com azulejos portugueses ainda ornamentam as ruas dessa cidade mais que esquecida. A festa do livro e da leitura permitiu que soubéssemos mais desse lugar. Vimos o belo e descuidado prédio da biblioteca abandonada e a placa de vende-se na fachada deteriorada da casa de Adolfo Caminha, mas isso foi possível de ser visto e mostrado por conta da movimentação da festa. A escolha de Aracati foi feliz inclusive por sua boa estrutura de hospedagem que só tem a melhorar com eventos dessa natureza.
Por isso a leitura dessa festa não deve se restringir a insuficiências das questões organizacionais. O desbravamento cultural de uma região, cujas características não contam com o perfil de veraneio de Guaramiranga nem com a existência de um público “comprador” como o da Festa Literária Internacional de Parati (Flip), precisa de paciência, persistência e segurança no propósito. O conceito da festa de Aracati é muito bom. Estive lá e não presenciei qualquer tentativa de empurrão de livro goela abaixo. O que percebi foi o flerte na praça entre as pessoas e os livros, esses estojos de papéis falantes, recheados de novidades e segredos da vida. Na fala que fiz no Circo Zumbi tive a impressão de estar em volta de uma fogueira de curiosidades acesa por olhos brilhantes de jovens e adultos dispostos a trocar saberes e quereres.
Compreendo a realização desse evento como a louvável tentativa de criação de um ambiente aberto a novas formas de definição de autores e leitores. Acredito que investir em cultura é antes de tudo investir na aragem de ambientes férteis. E isso, principalmente quando as verbas são escassas, necessita de calma, alma e muita atenção aos seus significados. Aracati não é mais a mesma. Com a festa do livro e da leitura, abriu uma perspectiva para dizer que existe, que tem valor e que merece lugar ao sol da cultura no Ceará. Os livros e a leitura colocados como foco de um evento importante simbolizam que nem tudo está perdido. Tenho insistido em dizer que a leitura começa fora dos livros, começa numa vontade de busca. O bom educador não é aquele que “ensina” a ler, mas o que desperta desejos de investigação no mundo fantástico das palavras.
Se estimuladas por esse tipo de movimentação as pessoas passarem a funcionar bem com relação aos livros, as instituições certamente também passarão. A recuperação do conjunto arquitetônico de Aracati, a melhoria dos espaços de biblioteca e do Museu Jaguaribano, bem como a vida cultural do município somente terão sentido se esse patrimônio material e imaterial tiver algum sentido para aracatienses e cearenses. “Esse circo é demais, pois queria que ele ficasse pelo resto da minha vida. Aqui é muito legal, a gente pode brincar, pintar e desenhar, também podemos olhar os livros”, escreveu uma criança num pequeno papel afixado na lona do circo da feira de livros infantis do Sesc, armado em plena praça.
Os eventos literários se multiplicam no País e o Ceará ousa em participar dessa ebulição com essa destemida festa dedicada ao livro e à leitura. Está em nossas mãos colocar Aracati no calendário cultural do Brasil. Não é fácil e leva tempo. Desafios como esse requerem ampla consciência da sua relevância e muita persistência. A continuidade é fator determinante para a evolução de tamanho atrevimento cultural. É fundamental que a festa do livro e da leitura de Aracati pegue, que se desenvolva e nos orgulhe da sua efervescência. Quem sabe, com isso, aprendamos a nos enxergar por outros ângulos e em outras dimensões que, por incrível que pareça, possam ser vistos a partir dos nossos próprios olhos.