Perto demais de Deus
Artigo publicado no Jornal O Povo, Caderno Vida & Arte, página 8
Terça-feira, 25 de Janeiro de 2000 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Acabara de receber o disco da cantora mineira Patrícia Ahmaral e o estava escutando, no início de noite da última lua cheia. Pela janela, brincava com a ilusão lunar, fazendo tubo com as mãos fechadas, reduzindo, ampliando, aproximando e distanciando a lua. Quando dei por mim, estava escutando um refrão que dizia “essa gente é o diabo e faz da vida de Deus um inferno”. Abri as mãos para pegar o encarte e, ao fundo de um conjunto de nuvens esparsas, entre as silhuetas de prédios e das mangueiras sobreviventes no bairro onde moro, a lua retomou a sua distância e esplendor alaranjado definidos pelo meu engano ótico natural.
Deixei o volume baixinho e pressionei o botão indicado para repetir a faixa dez. “Perto demais de Deus”, é uma nova, melodiosa e oportuna composição de Chico César. Sua letra fala dos exageros praticados pela necessidade de um deus alopático e instantâneo. “Tem gente que não deixa Deus sozinho (…) e guarda Deus na cristaleira (…) e o trata como um funcionário seu (…) Cristo dentro da carteira / dez por cento rei dos reis”. Fui assimilando a poética envolvente da canção e montando um raciocínio sobre a coisificação divina que vende um deus pré-digerido e sem gosto, desfocando a fé. A falta de perspectivas para a operacionalização da vida, tange as pessoas ao abismo do embuste e ao jogo religioso de azar.
O vácuo deixado pela exaustão do Estado protetor e pela acentuada crise do canibalismo mercantil, em um mundo de cidadania frágil, tem sido propício ao ativismo comercial e político de crenças e salvações. Munidos de indicadores cognitivos dessa inadimplência social, os astutos executivos dos escritórios de representação do “senhor” se beneficiam das sobras dos deserdados do progresso, trocando filosofia de vida por apelos publicitários e meditação por euforia em transe, no vale-tudo da sedução. O produto “deus” desce para o varejo e cai nas feiras dos templos com a ameaça de retorno do dogmatismo religioso que tanta miséria e sangue já espalhou pelos caminhos tortuosos da História.
Olhei com mais atenção para a beleza da lua e fiquei pensando no quanto ela continua forte e encantadora, independente de todo o conhecimento que a ciência nos deu a seu respeito. Com relação a Deus, é impressionante o uso crescente do seu “santo nome em vão’’. Pirataria do mais baixo nível. Na luta pela sobrevivência, para conquistar o consumidor de fé, até as religiões mais amadurecidas vêm perdendo a profundidade da herança cultural que as deu sustentação e longevidade. Passaram a ser alternativas circunstanciais de invocação cotidiana. Mudar de religião passou a depender das variações do humor de cada um. Muitas igrejas perderam a função de espaço para a libertação do espírito, em busca da plenitude, para serem casas de câmbio de moedas podres da sorte.
Com a compra e aluguel de redes e canais de rádio e televisão, muitas seitas e religiões “ganharam” o direito de entrar nos lares do País e aporrinhar as pessoas até elas se entregarem pelo cansaço. Em um tempo não muito distante e nas exceções atuais, era e é preciso sair de casa para ir à missa. Havia uma cumplicidade, a roupa da missa, o desejo de rezar, comungar e fazer confissões. Através dos meios eletrônicos, cultos, doutrinações, hinos, missas, orações, músicas gospel e evangélicas, empanturram a carência de ouvintes e telespectadores com os mesmos métodos de aliciamento dos programas policiais de violência explícita. Ambos promovem-se pelo aspecto da terapia da proteção. Deus está cercado. Chico César tem razão. O eixo de condução para a iluminação divina foi mais uma vez deslocado da celebração do mistério para a busca imediata de soluções individualistas.
A expansão da procura do autoconhecimento e do equilíbrio físico e mental, ganhou também o seu mercado alternativo promissor. Multiplicam-se as clínicas de acupuntura e iridologia, as salas de aplicação de cinesiologia, cristais, florais, cursos de biodança e interesse por mapa astral e tarô. Videntes e curandeiros saem da toca do passado para respirar do oxigênio gerado pela incerteza. Pouco entendo da função de Deus no holismo, nas vivências corporais, na dinamização do equilíbrio bioenergético e emocional, mas sinto sua presença nos princípios intersubjetivos da natureza humana. Acredito que em todas as demandas que levam a paz e a harmonia, existe o toque discreto do dedo de Deus. É uma questão de apreciá-lo em todas as suas formas.
No especial sincretismo brasileiro, Deus aparece em linguagens espirituais diferentes. Querendo, dá para fazer a disjunção entre o divino e o consumismo bestial. Simplesmente, porque viver é infinitamente diferente do gerenciamento da vida. Viver é muito mais do que existir. A realidade da desordem não deixa, neste caso, de ser revigorante. Deus está calado. Deve ter suas razões para isso. Ao sair do ritmo da minha abstração, liberei a tecla de repetição da música de Chico César, para o disco seguir seu curso natural. A lua mudara sozinha de cor e tamanho. Sem respostas aptas a qualquer tradução racional, mas aliviado pelo exercício da dúvida, guardei a música e alguns pensamentos incandescentes na cabeça. Diante da constatação de que tanta gente tem azucrinado a vida de Deus, fiquei mesmo foi com a sensação de que, com tanta proximidade, Ele relaxou, está esperando ver em que tudo isso vai dar. Talvez apenas não queira mais continuar sendo o que costumava ser.