Nos 40 anos de lançamento do antológico álbum Melhor que Mato Verde, de Petrúcio Maia, a obra do artista, reconhecido como um dos grandes compositores cearenses do século XX, é revisitada por Flávio Paiva.
Com os primeiros versos que ouvi de Passarás, Passarás, Passarás (Petrúcio Maia / Capinan), interpretados suavemente pela cantora Ângela Linhares, fiquei suspenso como uma pluma em acrobacia provocada por sopro poético. “Tonto de tanto cantar, sou pássaro”, foi me dizendo a canção. “Somente pena / apenas canto / somente ar”, sussurrava em meu coração.
Na capa do disco Melhor que Mato Verde (1980), uma cena floral convidava-me a escutar mais e mais. “Tenta como eu ser asa / enquanto o tempo passa / Tenta como eu ser pássaro”, eram palavras e melodias leves que perambulavam pela minha cabeça de estudante universitário, encantado com um compositor que parecia estar de acordo consigo mesmo e com a música que fazia.
O soar natural da obra de Petrúcio Maia (Fortaleza, 21/08/1947 – 05/05/1994) me trazia (e ainda traz) emoções sem imposições, ponto de vista interior, aura poética de paixão, amor e fantasia, devaneio de existência livre, refinamento, delicadeza, elegância, desapego e outras pontes da experiência sensível. Em cores de jardim, daquele álbum ecoavam canções, choro, blues e boleros com vontade cromática de brasilidade.
Uma arte inconfundível pelo que expressa de espontaneidade, de fruto do prazer de sentir, compor, tocar e cantar com estilo sereno em teclas que fluem e notas que planam. Petrúcio Maia passou a ser admirado por mim como um artista do bem, do bom e do belo. Mente aberta, coração amoroso, ser integral, melodioso, dono de uma poética da natureza e da diversidade cultural.
Petrúcio nasceu em Iracema, a “Praia dos Amores” de Luiz Assumpção (1902 – 1987), e nos ares inspiradores desse recanto de boemia levou também ao piano sua paixão melódica pela cidade. Longe de determinismos territoriais e geracionais, Fortaleza foi seu lugar de formação, espaço de sentimentos e eco que se faz escutar na assinatura original de suas composições.
A música Pé de Sonhos (Petrúcio Maia / Brandão) retrata com singeleza um espírito bucólico do mundo urbano fortalezense, preservado como memória verde em suas canções. “No quintal por trás de casa tem um pé de sonhos / Que não para de florar, florar a noite inteira / Cada sonho seu me faz sorrir e até cantar”. Assim, ele criou universos que remetem às belezas naturais perdidas na vida urbana.
Filho de pais alagoanos, Petrúcio guardava um frescor de mata litorânea, presente em obras como Você (Heckel Tavares e Nair Mesquita). “Vocês já ouviram, lá no mato, a cantoria / Da passarada, quando vem o amanhecer / E já sentiram, nas planícies orvalhadas / O cheiro doce da plantinha muçambê”. Essa candura atávica das Alagoas se pronunciava naturalmente em sua cultura.
“Pois meu amor tem um pouquinho disso tudo / E tem na boca a cor das penas do tiê / Quando ele canta, os passarinhos ficam mudos / Sabe quem é o meu amor? Ele é você”. Isso que no cancioneiro da sua origem familiar vira fantasia transformou-se em metáforas na vida amorosa de Petrúcio. Em Pensamento Belo (Petrúcio Maia e Bigha Maia), eles cantam que “Nenhuma onda / Vai te levar para longe de mim / Foi só você / Que mergulhou em meu olhar”.
No disco Cantos do Planeta (1996), álbum do casal Petrúcio e Bigha Maia, lançado em caráter póstumo celebrativo, o sentimento de organicidade existente nas criações desse grande poeta da nossa música, alcança sua dimensão ontológica e holística em samba, baião, balada e cigania. Essa expansão do mundo natural aparece representada na capa, com um mandala sobre raios azuis, amarelos e alaranjados, onde Petrúcio e Bigha destacam-se em preto e branco.
Enamorado dos encantos femininos, Petrúcio Maia compôs obras de realce a essa atração, no que ela tem de associação com a natureza. Dizem os versos de Frenesi ((Petrúcio Maia / Fausto Nilo / Francisco Casaverde): “E um corpo passa por mim / Água do rio na areia / Adormecendo assim / Esta pedra em mim / E meu leito clareia // Fosse paixão frenesi / Doce ilusão moça bela / A solidão mora aqui”.
Com a cabeça mexida pelas imagens do cinema, fez Dorothy L’amour (Petrúcio Maia / Fausto Nilo): “Era miragem / Fantasia de um mundo blues / E eu fui chorar / Na areia Dorothy L’amour / Por que sangrar / Meu nativo coração do sul / Ah eu fui naufragar / Em teus olhos de mar azul”. Nessa composição, a pureza do mato ganha contornos de ilusão da arte cinematográfica, sem, no entanto, deixar de seguir a linguagem dos sonhos.
Do mesmo modo que Petrúcio Maia abraçou Capinan, o parceiro baiano de Passarás, Passarás, Passarás, ele acolheu os irmãos piauienses Clodo e Climério Ferreira em comunhão criativa. Cebola Cortada (Petrúcio Maia/ Clodo) é cheia de onirismos: “O Orvalho da noite / Brinca na luz do luar / Quem acredita em sereias / Sabe os segredos do mar // A cachoeira cantando / É a canção natural / Sempre lembrando pra gente / Que amar nunca faz mal”; Conflito (Petrúcio Maia e Climério) revela a aflição diante do amor: “Ah, meu coração que não entende / O compasso do meu pensamento / E o pensamento se protege / E o coração se entrega inteiro e sem razão”.
O lado amargo do amor teve como inspiração para Petrúcio, as dores de amores do compositor gaúcho Lupicínio Rodrigues (1914 – 1974). Está no canto ardente de Lupicínica (Petrúcio Maia / Augusto Pontes): “Vamos acabar com essa briga, amor / Que eu estou cansado (…) E hoje, sinto ciúmes até da tua falta / Mas não vou mais / Matar ninguém por tua causa / Mate-me, que eu já te matei / Inutilmente bêbado”. Trafegando em curvas rítmicas, ele sempre cruzava com as emoções puras das paixões.
A música mais marcante do seu repertório é Além do Cansaço (Petrúcio Maia / Brandão). “Quando não houver mais música no ar / nem houver sorrisos em volta / quando nada na tarde morta / além do cansaço da vida falar / Quando o cigarro irritar a garganta / e a bebida os lábios queimar / e a presença de alguém que ainda canta / não consiga no peito cantar”. Essa música tem um quê de presságio, de sinal do que viria a ser o arrefecimento da canção na indústria fonográfica brasileira.
É uma composição que traduz também os imperativos da necessidade de ir embora. “Quando a rua a casa e a porta / não mais falem de ir ou chegar / Quando não mais houver poesia / na triste canção da mesa de um bar / É preciso entender que perdida / pela vida uma estrada caminha / E que uma cidade sozinha / não comporta a procura da vida / É preciso sair pelo mundo…”. E foi nessa pegada que Petrúcio largou o emprego de funcionário público para, em 1979, ir morar no Rio de Janeiro.
Tempos difíceis pediram olhar atento, como em Incêndio (Belchior e Petrúcio Maia) “Na cidade magoada a usina de sonhos tão parada / Vejo da janela dos meus olhos /// Entendo o fogo porque sou daqui / E estas paredes porque sou daqui / E os meus amigos porque sou daqui / E os meus perigos porque sou daqui”. A música de Petrúcio nascia com cheiro, luz, espaço e harmonia, mesmo em situações adversas.
Como criador delicado, ele sentia a vida, a tonalidade das relações e a luminosidade da alegria em contraste com a realidade muitas vezes triste. Por esse caminho seguiu a diversão ensolarada. Batuquê de Praia (Petrúcio Maia) reflete esse animado discurso de cearensidade: “Não é qualquer carnaval / Não é qualquer litoral / Que faz a minha cabeça, não / Não é qualquer fuzuê / Não é qualquer não sei quê / Que vem bater no meu coração / Tem que ter um quê”. Petrúcio sabia transformar emoções em sentimentos.
Chamado carinhosamente pelos amigos de Pete, ele foi um regador da canção brasileira que Alberto Nepomuceno (1864 – 1920) semeou entre o final do século XIX e início do século XX. Tu és o sol (Alberto Nepomuceno e Juvenal Galeno) fala dos lindos raios dessa aventura sensível: “Tu és o sol das regiões etéreas! / À terra envia tua luz benéfica / E seu calor / É teu amor”. Há nessa aproximação atemporal um timbre evocativo comum do ambiente natural reverberado em sentimentos essenciais, resignados como se fossem apenas lembranças e, ao mesmo tempo, desfrute.
Interpretado por artistas do seu ciclo de relações pessoais, como Amelinha, Ângela Linhares, Ednardo, Fagner e Téti, mas também por vozes de outros territórios e tempos, como Nara Leão, Milton Nascimento e os grupos MPB-4 e Dona Zefinha, Petrúcio Maia destaca-se entre os compositores cearenses por ter produzido, solo e em parcerias, uma obra de sincera intimidade com o meio ambiente e a diversidade cultural, na qual o valor artístico não foi sobrepujado pelo valor de mercado.
Músico que unia aguçado ouvido interno com sofisticado apuro técnico, Petrúcio Maia identificava-se com a arte que produzia. Ao parecer com os sons e os sonhos das suas composições, ele assegurou equilíbrio na combinação de melodias e letras, formulando mensagens cativantes e formando algo único, além dos rótulos. A potência da obra desse adorável artista está na canção natural e sua grandeza inesquecível.