Poemas cantados de Celso Borges
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Quinta-feira, 25 de Setembro de 2008 – Fortaleza, Ceará, Brasil
A poesia é uma das garantias dos sinais vitais da sensibilidade em um mundo tocado pela eficiência técnica, pelo imediatismo, pelas avaliações de desempenho e pela apatia oriunda da razão obscurecida pelo excesso de informações. Em um tempo sem tempo para sentir ela dói, ela ri, ela ensaia prosseguir, entreatos e entretantos, por fora e por dentro das redes de comunicação onde se diz o que quer, mas todo mundo parece que só consegue falar das mesmas coisas.
Pontos e contrapontos estão mais pertos da gente do que se imagina. Meu filho Lucas, de nove anos, fez a primeira comunhão no sábado passado. Estava chateado porque o padre atendeu a uma ligação no telefone celular na hora da confissão. Depois da celebração fomos ver o espetáculo do circo da Mongólia, que está fazendo uma temporada em Fortaleza. Em meio à exibição dos acrobatas, o Artur, meu outro filho, de sete anos, virou-se para mim e comentou: “Pai, a cada momento que a gente vive a gente está morrendo”.
Vida, vela, belo, bela, ainda estamos vivos para sentir. Ser pessoa passa por questões éticas e estéticas que estão além, que vão além da uniformização dos motivos instrumentais. Pressionadas pelas cobranças de dívidas que muitas vezes não existem perdemos a capacidade de apreciar a poesia. Encontro uma colega de trabalho que me diz aflita da morte por atropelamento da sua vizinha. A tautologia sonora dos fones de ouvido que usava no momento em que cruzou os trilhos roubou sua atenção e ela não se deu conta do trem.
Rede ferroviária, rede de computadores, rede de dormir. Tirei o resto do dia para me balançar e de balanço em balanço conhecer os poemas cantados do mais recente livro do jornalista maranhense Celso Borges. O livro de poesia é um suporte de infusão da alma em nossos esforços pela reversibilidade do quadro de homogeneização dos sentidos. A poesia em doses estéticas homeopáticas dá sustentação aos sentimentos da condição humana diante da frustração das miragens abismais em que se transformam as promessas de poder, de ser e de felicidade.
A necessidade da poesia torna-se cada vez mais evidente. Os poemas nos colocam fora da caixa, nos marginalizam da mesmice e nos possibilitam passar perto de nós, que estamos tão distantes. Colocam-nos com o outro no centro das nossas atenções, reaproximando-nos do que é importante, que é sentir grande. Encontrei na poesia de Celso Borges a negação da exclusão da razão desejante. Em “Moradia” ele diz por meio do canto de Miriam Maria: “O que me comove mora fora de mim (…) o outro lado do mundo dentro de mim”.
O livro de Celso tem formato inspirado nos velhos compactos de vinil e se chama “Música” (Ed. Medusa, 2005). Um furo no centro transpassa página por página todos os poemas e seus tratos visuais, pondo os textos em rodopio de canções. Como o zeybek turco, o álbum tem o primeiro ciclo, o lado A, mais lento, mais poema do que música; e, no segundo ciclo, o lado B, a seqüência mais tocada com poemas em passos e compassos de letras de música.
Os cotidianos que se foram chegam rápido e baixam com calma nas fantasias de bumba-boi, ainda em carne viva e em raiz na lavoura de versos do autor. Vêm, coloridos, até se esbarrarem no encontro com o lirismo dos loucos, dos bêbados, no lirismo urbano de Manuel Bandeira (1886 – 1968). E ele diz “Chega!”, na voz de Ricardo Corona. Chega dos sentimentos de chats assépticos e de saudades de velhas bossas novas. “Chega de Bandeira a meio-pau”. Um chega sinônimo de basta de verbos de plástico que, como Carlos Vogt, recorda “do meu primeiro crime cometido por você” e caem na rede dos chatos irmãos Campos.
Desiludido e cheio de ilusões, Celso abraça a fiel poesia, sua infiel companheira, para gritar “J´arte”, como bradou Bené Fonteles em seu famoso “Antes arte do que tarde”. Para dizer que o motor do silêncio dos poetas é “não sei quem és não sei quem sou” faz voz e trilha com Natália Mallo, viandante portenha das ruas paulistanas. Para nunca esquecer que “no meio do caminho tem uma pedra”, vaga com Drummond, Carlos Drummond de Andrade (1902 – 1987). E lê o poema de perplexidade itabirana, enquanto Carlos Careqa narra pedra por pedra as imagens sonoras do sampler de uma estrela distante que não se aproxima.
O lado A termina com exorcismo verbal de Ademir Assunção e a afirmação de que “A posição da poesia é oãçisopo” e com uma citação intratextual de Emmanuel Marinho e Paulo Lepetit: “Poesia não compra sapato, mas como andar sem poesia?”. Eis a questão dessa vinheta de passagem para o lado B, o lado onde a poesia faz o papel de letra de música, com direito a fado fluvial de Kleber Albuquerque, toada popular regada à Josias Sobrinho, Vange Milliet em flanar de piano, revérbero de Chico César e tiradas das palavras rasgadas de Bob Dylan.
Em seu desabafo de amor a São Luiz, Celso Borges recusa a ilha dos azulejos sujos de lodo de tantas colunas sociais. Poesia falada da piracema sentimental de quem ama. Na voz de Geninha, com trilha do dj Otávio Rodrigues, sente em lembranças a carícia dos tambores da madre deus, em valsa de calçadas e ladeiras por onde atabaca um coração ateu que, em nome da mãe, sabe até rezar stereo e mono para celebrar a vida em poema.