O que se pode esperar da política depois que passar o caos autodestrutivo que vivemos é uma das interrogações mais inadiável que temos a fazer. No entanto, para que nos façamos essa pergunta precisaremos saber se a orientação moral decorrente da experiência lutuosa da pandemia penderá para o modo de pensar a política dos que apostaram apenas nas cobiças pessoais ou se prevalecerá a atenção responsável para com o outro e sua condição social e econômica.
Esse ponto de reflexão passa ainda por resultantes do social-ambientalismo, da sobrevivência da democracia e da evolução ou involução do nosso incipiente processo de ‘cidadania orgânica’, conceito que utilizo desde 2009 na busca de entender o comportamento de indivíduos e grupos que movimentam seus interesses sentindo-se parte do todo. Nessa perspectiva, a política se dá na lateralidade, nos pequenos gestos diários onde cada qual atua.
Para o bem ou para o mal, na formatação que for, os poderes seguirão existindo e os diferentes interesses também; por isso a política continuará sendo fundamental em nossas vidas. Contudo, escapar da politicalha que predomina no país requer que liberemos a cabeça para experiências comparativas. Para quem estiver disposto a arejar sua compreensão de política, recomendo a série Borgen (Netflix), da Dinamarca.
Borgen é a maneira como os dinamarqueses se referem ao Palácio de Christiansborg, onde se concentram os poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, além dos gabinetes dos líderes partidários do país. O enredo é desenvolvido a partir do pensamento e da ação de Birgitte Nyborg (Sidse Babett Knudsen), a líder do partido Moderado, que assume o poder ao se tornar a primeira-ministra em uma circunstância inesperada.
A trama gira em torno de princípios e pragmatismos com relação ao que se pode ou não ceder, contemplando disputas eleitorais, articulações e acomodações de cargos para a governabilidade e como se dá o processo de tomada de decisões. Tudo tendo como catalisador um olhar feminino voltado para uma ordenação social não-patriarcal da justiça e da vida, entre a mídia de fofocas e a atuação vigilante de um jornalismo profissional.
A personagem Birgitte é um bom exemplo do que a pensadora e política cearense Heloneida Studart (1932 – 2007), seis vezes deputada carioca, chamava de “poder desarmado” (JB, 06/02/2001). Heloneida acreditava que para não se perder a humanidade seria preciso feminilizar o mundo e, consequentemente, desarmar a sociedade de suas pistolas, revólveres, flechas, espadas e punhais.
Como é próprio de uma democracia, a Dinamarca tem seus extremistas de direita e de esquerda, seus populistas xenófobos, seus conservadores e seus vanguardistas, todos convivendo no Borgen. A série aborda conspirações, chantagens e manipulações de expectativas da população, mas em um razoável padrão de disciplina e respeito aos papeis uns dos outros e de compromisso com o interesse público e com a institucionalidade.
Borgen foi lançada em 2010 e, surpreendentemente, no ano seguinte a Dinamarca elegeu Helle Throrning Schmidt, do Partido Social Democrata, como primeira-ministra (2011 a 2015). Mesmo sendo uma ficção, essa série inspira pela decência de Birgitte diante das desafiadoras decisões próprias de quem está no poder; neste caso uma pessoa comum, falível, mas, antes de tudo, uma cidadã orgânica, honesta consigo mesma e convicta dos valores em que acredita.