Por dentro da Amazônia
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno3, pág.2
Quinta-feira, 10 de Janeiro de 2013 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Alguns amigos me perguntaram se a escolha da Amazônia como destino de férias no mês de dezembro que passou foi uma busca por isolamento do ritmo de vida urbano. Respondi que não. A opção pela região norte está inspirada no sentido de ampliação e interligação da convivência no mundo real. A floresta pulsa em ritmo e intensidade de variedades simultâneas, em uma biodiversidade de cadências que independe do tamanho dos acontecimentos em seu conceito de tempo, segurança, riqueza e permanência. Tudo é grandioso na selva porque a ideia de valor na natureza está associada ao todo e não a partes.
Passamos uma parcela do nosso tempo no Ecopark, um hotel de selva, outros dias em Manaus e o restante das férias circulando em táxi fluvial pelas atrações do Rio Negro, Solimões, seus braços e igarapés adjacentes, na companhia do agradável guia Francisco Alves, e em carro alugado pelas estradas que levam a Presidente Figueiredo, a represa de Balbina e, atravessando a nova e bonita ponte de mais de três quilômetros sobre o Rio Negro, para conhecer um pouco do desarrumado, embora acolhedor, município de Iranduba. O segredo desse tipo de viagem é mudar de agitação, evitando trocar as atribuições cotidianas por outras rotinas.
O guia Luizinho, que acompanhou a mim e ao meu filho Lucas, de 13 anos, numa luxuosa caminhada de duas horas pela floresta, esclareceu logo de cara que acha a floresta um lugar mais seguro do que a cidade. Nascido no Amapá e criado na selva, ele explica que andar na mata é apenas uma questão de atenção e de conhecimento da dinâmica da natureza, tendo em conta que a maioria dos bichos perigosos tem hábitos noturnos. Assim, não há como alguém ser picado por uma cobra se não pisar nela em seu descanso. É isso que faz com que ele assegure que as trilhas não são tão imprevisíveis como as ruas da cidade grande.
Nas áreas com água de elevado percentual de acidez, como a do Rio Negro, quase não tem mosquito, pois dificilmente seus ovos conseguem eclodir com pH (Potencial Hidrogeniônico) alto. Mas se a gente quiser repelente, o Luizinho nos mostrou que basta soprar em uma casa de formigas tapiba, feita de folhas em decomposição e fixada no tronco das árvores como cupinzeiros, que elas saem aos montes, ocupando nossas mãos e braços; daí é só esfregar, que o cheirinho delas vira um dos repelentes naturais costumeiramente usados pelos povos das florestas.
O estado selvagem tem seu agito no movimento das águas, das chuvas, dos ventos, das folhas, das embarcações. É prazeroso andar num lugar habitado por um sem-número de mitos. A presença dessas forças que não existem projetam a aventura exterior e interior para além da viagem. Nos mistérios da selva há sempre uma história a contar. Em cada planta, em cada sombra, mora um ser fantástico olhando pra gente. Mesmo quando encontramos pessoas, tudo parece mágico. No dia em que visitamos alguns índios dessanas, fiquei com a sensação de que eles não sabem bem se são de verdade ou lendários.
Por dentro da mata, recordei histórias que, na infância, eu ouvia da Dona Bárbara, uma lavadeira de roupas que havia passado um tempo perdida na selva amazônica. Ela contava isso com muita verdade e força imaginativa. Quando simulava a voz das pessoas que procuravam por ela, gritando “Bárbara!, Bárbara!” eu ouvia aquelas vozes, como quem escuta o eco das batidas na Arabá, a incrível árvore com raízes tubulares, do tipo sapopema, que os nativos utilizam como instrumento de localização. Somente agora eu conheci essa árvore que reverbera como um tambor e ela fez com que eu me desse conta de que estava no cenário das histórias da Dona Bárbara.
A caminhada silenciosa pela floresta expande a existência. Tudo o que está ao nosso redor é muito mais do que se pode ver, ouvir, tocar, cheirar, saborear, lembrar e sentir. Os ciclos da vida fluem como se dissessem que permanente mesmo só a natureza, tudo o mais são circunstâncias. Uma simples casca do pé de benguê me levou às quadras de futebol, onde, quando garoto, usávamos um bálsamo com esse nome para os machucados do jogo. Mensagem semelhante chega no cheiro do cipó aromático de cravo, nas aves coloridas, na vitória-régia, no canto do capitão-da-mata, pássaro que ouvimos bem de perto no dia em que fomos com a guia Santilha Ferreira conhecer a deleitável Caverna do Maruaga. Na copa das árvores, ele anunciava a nossa presença com um belo e firme “ui-uiiiuu”.
Pela estrada que leva à represa de Balbina fomos a um dos lugares mais deslumbrantes da viagem, que colocaram no nome de Gruta da Judéia. Foi por ali também que tomamos banho nas cachoeiras da Reserva Ecológica Santuário e, em seguida, fomos comer um pirarucu na brasa na churrascaria e peixada Urubuí, na cidade de Presidente Figueiredo. Banho gostoso como esse tomamos também no Ecopark. Depois de suado da caminhada é relaxante o impacto da água fria da piscina natural, mas também o impacto da plasticidade do reflexo da mata na água escura, onde nossos corpos mergulhados ganham coloração alaranjada, como se fôssemos galos-da-serra.
E por falar em galo-da-serra, nas formações areníticas das grutas chegamos a ver dois ninhos desse belo pássaro de forte cor alaranjada, com crista em forma de meia-lua estendida até o bico. Em ambos, a fêmea, com suas penas escuras e camufladas, estava chocando. Esperamos, esperamos e esperamos para ver se o macho aparecia, mas foi em vão. Ao retornar, contei isso ao fotógrafo-ornitólogo Ciro Albano e ele me disse que “por serem extremamente coloridos os machos não participam da incubação e criação dos filhotes. A presença deles perto do ninho chamaria a atenção de potenciais predadores”. E esclareceu: “A única obrigação deles é dançar para as fêmeas em arenas muito bem cuidadas. E assim é a fascinante natureza”.
Como a mudança cromática da paisagem eu fui me divertindo com a mudança de pensamentos. Biodiversidade e multiculturalidade foram alguns dos matizes que me levaram até o encontro das inúmeras nações que estavam na região antes da chegada dos povos ultramarinhos. Vicente Pinzón, depois de passar pelo Ceará, em janeiro de 1500, antes de Pedro Álvares Cabral chegar à Bahia, descobriu o Rio-Mar, que chamou de “Mar Dulce”. E veio a conquista continental dos espanhóis e portugueses, a chegada dos ingleses e dos cearenses e demais nordestinos para a exploração da borracha, abrindo movimentações migratórias que incluem pessoas de ascendência africana, judia, sírio-libanesa, estadunidense, italiana e japonesa, que implantaram variedades de cultivo, o polo tecnológico, a mineração, o uso dos recursos energéticos e da biotecnologia tropical.
Chegaram os caucheiros, caçadores de índios e traficante de mulheres nativas e, mais recentemente, gaúchos, paranaenses, goianos, mato-grossenses, mineiros, capixabas e paulistas, com suas fazendas de gado, serrarias e plantações. E a Amazônia segue seu processo de antropodiversidade acolhendo a todos de braços abertos para a troca de saberes, conhecimentos, valores, técnicas e experiências étnico-culturais. Manaus pareceu-me uma cidade que começa a retomar a importância que teve no passado da borracha. Fiquei com essa sensação ao atravessar a ponte de mais de três quilômetros que liga a capital a Iranduba e comer biribá, um tipo de ata nativa, e rambutan, uma exótica fruta asiática.
Dentre tudo o que fizemos de maravilhoso nessa viagem eu não poderia deixar de mencionar o banho que tomamos com os botos cor de rosa, que os nativos chamam de Piraiauara, no rio Acajatuba. Não esqueço da força da fantasia do meu filho Artur, de 11 anos, diante dos saltos desse mito da narrativa oral amazonense. Foi lindo e divertido também o banho de temporal que, entre raios e trovões, tomamos todos na pequena voadora em que singrávamos o Rio Negro, na tarde do dia 31 de dezembro de 2012, quando o ano se punha no horizonte do calendário.