Pôr-do-sol em Fortaleza – Tem alguém na outra ponte
Artigo publicado na RIVISTA do MINO nº 150 (Editora Riso), p. 20
Edição de setembro de 2014 – Fortaleza, Ceará, Brasil
FAC-SÍMILE
Bento costuma ir olhar o pôr-do-sol na Ponte Metálica de Iracema, a antiga Ponte dos Ingleses. Tem sempre uma sensação agradável ao sentir o crepúsculo naquele lugar. As tábuas do piso deixam fluir nesgas de vento que sobem das ondas mesclando-se à brisa da superfície, provocando uma invisível alegria de ar.
Sempre que pode, está ali, ao entardecer. São momentos muito especiais em sua vida, tanto que ele não sai comentando por aí, sem mais nem menos. Mas teve um dia que foi diferente; tão diferente que ele acha não ter sequer visto o pôr-do-sol naquela ocasião.
Não era sábado, nem domingo. Possivelmente uma segunda-feira. Talvez terça. Não lembra. Só sabe que tinha alguém na Ponte Metálica do Poço da Draga, virado para o nascente. Como uma pessoa daria as costas para o sol daquele jeito, àquela hora, foi a indagação que lhe rodeou a mente naquele instante e nunca mais saiu da sua lembrança.
Bento sentou no lugar de costume. Ele não via os olhos da pessoa na outra ponte, o contraluz não permitia. Quanto mais tentava observar as suas expressões, mais tinha dúvidas sobre a intenção do estranho, que permanecia imóvel contemplando não sabia o quê.
– Bom, ele pode estar simplesmente preferindo olhar à cidade ao invés do pôr-do-sol. Quem sabe já vive cansado de tanto pôr-do-sol. Pode ser também um narcisista megalomaníaco que esteja se sentindo o próprio sol clareando a cidade e o mar, ao mesmo tempo em que o admiramos – desdenha Bento.
De repente, a figura se move, sugerindo o desejo de focar melhor um determinado ponto perdido em direção ao Porto do Mucuripe.
– O que estará reconhecendo entre as embarcações? Terá alguma recordação de mar? Navios, escunas, jangadas… Por que algumas coisas ficam na nossa memória e outras não? Ou será que apenas se mexeu para encontrar uma melhor acomodação? É, deve ter sido isso. Mas se não for? – E Bento continua esmerando sua curiosidade, tendo como interface um pequeno trecho de mar ornamentado por surfistas dispersos.
Ele sabe que é impossível colher detalhes do desejo de um homem sem rosto. Há refração de memória e a evidente limitação da leitura do seu olhar. Fortaleza tem uma orla invejável, cheia de bares, restaurantes, hotéis, feira de artesanato e um sem-número de atrações num amplo cenário valorizado por coqueiros e gente simpática. E camada após camada de edificações. Mas Bento entende que prédios são apenas aquilo que são, que mais vale a cabeça de quem faz a cidade do que a própria cidade.
– É… – medita Bento – esse cara não está apenas impressionado com a nossa beleza urbana, não. Tem peixe nesse anzol. O sujeito só mexe com os cabelos porque é o vento que está fazendo o serviço. Mas o que eu tenho a ver com isso? Afinal, vim aqui para ver o pôr-do-sol – cobra-se meio assustado com a sua intromissão na vida alheia.
Bento é teimoso. Não sossega enquanto não esgota uma curiosidade. E sua vontade naquele instante é de cuidar do olhar da pessoa que sentou de costas para o sol de fim de tarde.
– Mas se o cara for um turista deslumbrado com a cidade? Fortaleza é muito bonita. Para ele, tudo pode ser novo, e novo é uma espécie de passado que a gente não conhece.
É inútil. Bento tem consciência da incapacidade de captar o pensamento da outra pessoa que ele imagina estar vivendo também o seu instante de clarividência. Fica de pé e resolve interferir no olhar do outro. Grita. Apela para a pantomima. Nada. A figura da Ponte Metálica do Poço da Draga não se mexe.
– Droga! – lamenta – para onde esse desgraçado está viajando em seu olhar? Como ousa brincar de atenção seletiva enquanto me desespero? Ei! – acena gritando mais alto – mais do que o sol este Ceará velho tem em nós cearenses o seu maior tesouro! Pois é, nossa culinária, nossas canções, nossa poesia, nosso humor… – vai enumerando atributos culturais até cansar a voz e quase não falar mais. Durante o desabafo sua cabeça pende sobre o peito e Bento desliga lentamente como uma bateria sem gerador, como um mamulengo sem manipulador.
O sol recolhe os últimos reflexos e as pessoas começam a deixar a Ponte Metálica de Iracema sem dar qualquer atenção a Bento. É provável que alguém tenha achado estranho sua movimentação agitada, mas difícil é saber o que é ou não estranho hoje em dia. Um doido a mais, um doido a menos…