Porque as gemas precisam brotar
Artigo publicado no Jornal O POVO, Caderno Vida & Arte, pág.4
Quarta-feira, 13 de abril de 2016 – Fortaleza, Ceará, Brasil
FAC-SÍMILE
Nesta data (13/4/2016) em que Fortaleza completa 290 anos de elevação à condição de vila – passo decisivo para o início da grande e importante cidade que se tornou – tenho a satisfação de estar completando quatro décadas de acolhimento neste lugar ao qual aprendi a querer bem, a vivenciar suas contradições e a cuidar como sendo também meu.
Ao longo desses 40 anos morei em nove bairros da cidade: Benfica, Centro, Jacarecanga, Varjota, Papicu, Aldeota, Dionísio Torres e Meireles; e participei de inúmeras e variadas ações culturais e de cidadania, por meio das quais tive a oportunidade de atuar em quase toda a Região Metropolitana.
Fortaleza está constantemente à vista nos meus escritos, inclusive nos infantis, como na publicação, há uma década, de Fortaleza – de Dunas Andantes a Cidade Banhada de Sol (Cortez Editora), livro desde então adotado por distintas escolas públicas e privadas, o que muito me honra como autor e amante dessa cidade tão rica em sua formação humana quanto empobrecida por consequência do desconhecimento da sua força multitudinária sedimentada por padrões culturais diversos e plurais.
Incomoda-me esse descompasso vertiginoso entre o tanto que somos e o tão pouco do como nos enxergamos, pelo que ele representa de entrave ao nosso bem-estar de desenvolvimento. Movido por este incômodo e, de certo modo, sentindo-me autorizado por uma intensa relação de 40 anos – selada formalmente com o título de Cidadão de Fortaleza que recebi em 2005 por generosa iniciativa do líder comunitário João da Cruz, quando vereador – decidi compartilhar no meu oitavo livro-CD, que chamarei de Bulbrax, o que penso a respeito das pulsões criativas nem sempre visíveis que integram Fortaleza.
Criei o conceito de Bulbrax inspirado no sentido de vínculos que os bulbos representam na sua potência multiplicadora como touceira. Uma cabeça de alho, por exemplo, é um bulbo, com gemas que se propagam e brotam sem a necessidade de sementes; fenômeno que tomei como semelhança lógica para falar das estruturas vinculares que estou desenvolvendo neste ensaio com bulbilhos de literatura, música e intervenções de arte visual.
O que mais me tem animado nesse processo é a pronta disposição inventiva e consistente das pessoas com quem tenho contado na construção desse trabalho, o que dá concretude aos argumentos de sociomorfologia cultural que, com Bulbrax, proporei ao debate sobre Fortaleza, a título de resposta a uma realidade que nos questiona com a sua presença.
Bulbrax é, portanto, uma palavra derivada de bulbo, que ofereço para significar a condição de contato, por força das interdeterminações e resiliência dos mais diversos grupos sociais, capaz de lançar de si os impulsos culturais das alianças ocultas que tecem a trama da nossa vida urbana. Em cumplicidade complementar temos nos esforçado para que cada capítulo, cada faixa do disco e cada fragmento de imagem se entrelacem e se soltem num movimento orgânico voltado à fruição e à reflexão sobre encontros entre conhecidos que se desconhecem, seus pressentimentos, efeitos de perturbação simbólica, igualdades vexatórias, fertilidade dos espaços baldios, riqueza da cidadania improdutiva, negações, aproximações, jeitos de amar e desamar a cidade.
Daqui a uma década, quando Fortaleza fizer 300 anos, poderemos ser uma cidade a nos reconhecer como preparada para o diálogo global, mas isso não ocorrerá enquanto não formos além dos mapeamentos, relatórios e descrições de identidade. Definitivamente, a cultura não é coisa apenas para especialistas; a cultura – para se expressar como sentimento, emoção, visão e práxis de um lugar em suas conexões com o mundo – necessita, antes de tudo, superar o velho conceito de raiz e toda a sua ideia de crescimento vertical, como tão bem problematiza a teoria rizomática dos pensadores franceses Gilles Deleuze (1925 – 1995) e Féliz Guattari (1930 – 1992).
Assim, unindo recursos etnográficos da minha experiência de 40 anos como filho adotivo de Fortaleza e me valendo de uma prazerosa e instigante bibliografia, sobretudo a que faz aprofundamentos sobre configurações vinculares, a mim amorosamente cedida pela psicanalista Ana Olmos, e em um intenso processo de trocas com as parceiras e parceiros de ilustrações musicais e visuais, comemoro os 290 anos dessa cidade, que mais dia menos dia cumprirá o destino de relevante potência cultural e, por conseguinte, social, política e econômica brasileira. Bulbrax!!!