Predadores da infância
Artigo publicado no Jornal O POVO, Caderno Vida & Arte, pág.5
Quarta-feira, 21 de maio de 2014 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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FAC-SÍMILE

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A proibição da publicidade dirigida à criança, levada legalmente a efeito no Brasil desde o dia quatro de abril passado, mexeu na zona de conforto das empresas que insistem em se aproveitar da credulidade infantil para criar necessidade de compra em meninas e meninos. Apostando na força do sofisma diante do óbvio ululante, essas corporações passaram, por meio dos seus agentes de propaganda, a investir na disseminação de informações que possam confundir as pessoas e enfraquecer a mobilização em favor de uma infância livre de publicidade.

Enquanto isso, cresce na sociedade civil e no âmbito dos poderes públicos a consciência de que não dá mais para tolerar essa espécie de predação da infância. A situação está clara, claríssima, insofismável. A Resolução 163/2014 do Conselho Nacional da Criança e do Adolescente (Conanda), promulgada pela presidenta Dilma Rousseff, enquadra-se perfeitamente nas nossas disposições constitucionais e está em linha com o Estatuto da Criança e do Adolescente e com o Código de Defesa do Consumidor.

A reação por parte dos que se beneficiam dessa prática abusiva de comunicação mercadológica tem sido pesada. Além de tergiversações do tipo isso é “censura” e “afronta à liberdade de expressão”, eles vêm agindo na esfera do Legislativo, conseguindo inclusive apresentar um decreto assinado pelo deputado federal Milton Monti (PR-SP) para sustar a resolução do Conanda. Em paralelo, o Instituto Alana, entidade pioneira no combate efetivo à publicidade dirigida à criança, encaminhou ao Ministério da Justiça denúncia de anúncios que continuam sendo ilegalmente veiculados.

O jurista Dalmo de Abreu Dallari vai ao cerne do debate no campo do direito, quando advoga que o controle das ações mercadológicas voltadas para a infância está vinculado às regras comerciais e não à liberdade de expressão: “Essa distinção é essencial, pois retira a base jurídica dos que, interessados prioritariamente no comércio, tentam sustentar a alegação de inconstitucionalidade das normas legais e regulamentares que fixam diretrizes para a publicidade dirigida à criança” (JB online, 26/04/2014).

Quarenta e cinco entidades da sociedade civil, que tratam de temas da infância, do consumo, nutrição, assistência social e dos direitos do ser pessoa, já assinaram moção de apoio à resolução do Conanda. Como não poderia ser diferente, o Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar), órgão que atua em defesa dos interesses das agências e dos anunciantes no controle de excessos no mercado da comunicação mercadológica, apresenta-se como instância capaz de cuidar também de interesses sociais, dentre os quais o da proteção da criança diante de abusividades.

A intensão do Conar seria louvável, não fosse a sua natureza. As fábulas ensinam que não dá para confiar em raposa tomando conta de galinheiro. Se aplicada, a autorregulação poderia ser útil à sociedade e às empresas. Para a sociedade, essa hipótese evitaria o esforço do enfrentamento ao assédio dos comerciais que têm na criança seu público alvo, e, para as empresas, uma oportunidade de se dar conta do seu compromisso social. Mas isso é improvável, pois as empresas que se escondem por trás da ação das agências de publicidade e propaganda são as mandantes desse atentado contra a infância.

O despertar por direitos que antes pareciam fora dos anseios da sociedade, como é o caso da proteção da criança ante a importuna insistência da publicidade, não recomenda que as empresas preguem desobediência às leis. A imagem institucional, as marcas e os produtos das corporações vistas como socialmente irresponsáveis podem sofrer consequências irreparáveis. No caso das multinacionais, isso ainda se torna mais grave, pois é revoltante saber que muitas delas não praticam nos seus países de origem o que fazem por aqui. E são muitos os países que têm regulação altamente rigorosa com relação à publicidade e a ações promocionais que envolvem crianças e adolescentes.

Os argumentos utilizados pelos intermediários das empresas que teimam em ocultar essa realidade para extrair seus lucros da ignorância persistem no propósito de indução das pessoas a falsos olhares sobre a questão. Assim, agindo vergonhosamente em causa própria, falam de tolhimento da livre iniciativa, de liberdade de concorrência, de interferência do Estado no mercado, e até chegam a dizer que proibir a emissão de mensagens publicitárias diretamente às crianças é uma imposição que vilipendia o direito de cada família de criar os filhos da maneira que achar mais correta.

No entanto, o desejo manifestado por pais, educadores e cuidadores das múltiplas comunidades educativas contemporâneas para que a publicidade de produtos e serviços infantis seja dirigida a eles e não às crianças, deixa facilmente visível que não se trata de uma campanha contra a publicidade em si, nem ao consumo. Querendo ou não, são os adultos que amargam a pressão consumista decorrente da influência coercitiva da publicidade voltada às crianças, que, por sua vez, sofrem com danos morais, psicológicos e de sociabilidade.