Os artistas inclassificáveis me parecem mais grandiosos, mesmo quando suas obras não alcançam a popularidade que merecem. São artistas difíceis também de adjetivar por não se enquadrarem nos tradicionais códigos de modificação de significados. Por ter dedicado a vida ao campo fértil das margens, o compositor e cantor uruguaio Gustavo Pena (1955 – 2004) escapou dos enquadramentos, e sua criação segue livre como livre deve ser a arte.

Pode-se dizer que ele foi independente, alternativo ou experimental, e até qualificá-lo como brilhante, múltiplo, abundante ou caótico, mas nada disso chega perto do que ele de fato foi e do que fez em sua busca constante de ser o que era, sem metas e desapegado das normalidades. Na canção “Pensamiento de Caracol”, sinaliza o que é amanhecer pela estrada com a casa nas costas empurrando o destino para um lugar qualquer.

Gustavo Pena esteve no mundo como um ser musical e poético que se valeu de sua máxima potência existencial, sensorial e somática para compor e improvisar intuitiva e compulsivamente centenas de melodias, letras e harmonias criativas que dele brotavam como corais multicores. Com guitarra, violão, gaita ou bandolim, tocou e cantou a beleza, o amor, a amizade, a dor e tudo o que lhe coube imaginar.

Usa-se frequentemente a metáfora do voo para falar de imaginação, mas a imaginação de Gustavo Pena parecia aquática, como em “Alma de peixe” (Alma de pez), parceria com Nico Davis, em que ele canta o prazer das ondulações na descoberta do amor entre as algas. Suas fantasias tinham barbatanas que o levavam a brincar com sons, palavras e gestos, ao ponto de ter dado à filha Eli-u o nome de um som que lhe passou pela cabeça.

Gustavo Pena em foto publicada na revista digital La Primera Piedra (27/10/2020).

Conheci a Eli-u Pena no lançamento do livro de partituras “Príncipe – Canto de aquí para allá: Cancioneiro de Gustavo Pena”, dos músicos Juan Oliveira, Nicolás Selves e Santiago Massa, realizado na Sala Lazaroff (18/11), no bairro Curva de Maroñas, em Montevidéu. Depois do bate-papo dos autores, todos egressos do Conservatório de Música de Tatuí/SP, ela subiu ao palco para uma celebração com músicas do pai, que era conhecido como El Príncipe.

Esse apelido tem uma contradição que se encaixa perfeitamente ao que representa Gustavo Pena, porque ele era um Príncipe Incivilizado, conceito que tomo emprestado do nome de uma de suas bandas, a Buraco Incivilizado. Considerando-se o seu corpo franzino real, de quem nasceu e viveu na linha da sobrevivência, e a alusão feita ao corpo do Pequeno Príncipe, de Saint-Exupéry (1900 – 1944), bem-nascido na criação do autor francês, a antinomia se desfaz diante das circunstâncias de ambos, perdidos em seus desertos, mas salvos pela imaginação.

Muita gente conhecia a obra de Gustavo Pena por meio de fitas k-7 que circulavam em canais alternativos e em apresentações marginais. Em vida, gravou apenas dois discos: Amigotez, com Nico Davis (2002), e El Recital, com El Club de Tobi (2003). Depois que partiu, veio o fenômeno Vangoghiano, e o Príncipe virou cult, interpretado por artistas como o cantor franco-espanhol Manu Chao em ¿Cómo que no?: “As crianças nas esquinas (…) Nem Deus as socorre (…) Bebem, fumam livremente / Esperando encontrar no céu / O amor que não têm (…) Olha isso!”.

A música de Gustavo Pena vem respirando como os peixes, pelas brânquias dos cardumes da arte independente. Eli-u digitalizou os originais da obra do pai – áudios, vídeos e fotos – e disponibilizou tudo gratuitamente para o mundo em um portal (imaginandobuenas.com.uy). No disco Acredito nos Elefantes (Creo en los elefantes, 2008), canta 12 inéditas tiradas do baú, e dirigiu ao lado de Matías Guerreros o documentário Espíritu Inquieto (2019). Não dá para antever se “Um dia haverá amor em aerossol” (Distinto), mas dá para dizer que o Príncipe Incivilizado está nadando como nunca!!!

 

Fonte:
Jornal O POVO