Produção cultural em três tempos
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno3, pág.2
Quinta-feira, 30 de maio de 2013 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Muita gente nem imagina o tanto que a produção cultural mudou no Brasil nos últimos 20 anos. Saímos da operação com telex e fax para a comunicação por e-mail e celular. O LP, a fita k-7 e o walkman cederam lugar ao CD (que ainda resiste) e aos tocadores de mp3. Nessas duas décadas surgiram as leis de incentivo à cultura, as políticas de editais, a valorização do marketing cultural e a criação de órgãos públicos e privados para dar vencimento ao crescimento da demanda.
O panorama dessas transformações está bem sintetizado na edição comemorativa de 20 anos do “Guia brasileiro de produção cultural 2013 – 2014” (OLIVIERI, Cristiane e NATALE, Edson. Edições Sesc-SP, 2013), lançado na quinta-feira passada (23), na nova, diversificada e agradável livraria Martins Fontes, da avenida Paulista, em São Paulo. Na condição de um dos entrevistados da edição, estive presente ao lançamento e pude constatar o crescente interesse de artistas, produtores culturais e gestores de cultura por essa publicação que se tornou referência para o setor no Brasil.
A publicação traz um amplo quadro da produção brasileira em três tempos: 20 anos atrás, hoje e daqui a 20 anos. No prefácio do guia, o diretor do Sesc São Paulo, Danilo Miranda, levando em consideração o aumento da percepção da necessidade de vínculos entre cultura e educação, destaca a importância de que se pensem políticas e projetos de produção e acessos culturais, não somente como oportunidade de realização de algo vantajoso, elitista ou populista, mas também com “foco na demanda, mediante a formação de públicos da cultura” (p. 9).
O guia, que está em sua sétima edição, foi criado pelo músico e gestor cultural Edson Natale, que desde 2004 passou a contar com a parceria da advogada Cristiane Olivieri, especialista em gestão de processos comunicacionais e culturais. Juntos, eles organizam na publicação informações e análises relativas a planejamento, administração, questões jurídicas, direitos autorais, projetos, financiamentos e instituições culturais da cadeia socioeconômica da cultura. Nos nove capítulos e nas páginas amarelas da edição atual, além de tratar de todas essas instâncias, eles expõem pontos de vista e relatos de experiências de entrevistados.
O processo de produção cultural e do entretenimento é revolvido em vários campos. Quando o tema é planejamento, está lá o editor e antropólogo Felipe Lindoso (p.41). Se o assunto é economia criativa, falam a economista Ana Carla Fonseca (p.55) e a produtora Fernanda Feitosa (p.61). Sobre projetos e financiamento, a entrevista é com o ex-jogador Raí (p.207), da Fundação Gol de Letra, que atua na interface da educação, cultura e esporte. Lucimara Letelier (p.137), diretora de artes do Consulado Britânico, e Célia Cruz (p.143), especialista em captação de recursos para organizações da sociedade civil, acrescentam dados referentes a instituições culturais. A mim, coube falar de comunicação (p.223), extensiva a diversos aspectos da minha experiência de “cidadania orgânica“.
O livro traz ainda um apêndice intitulado “Guia +20” (p. 293), com entrevistas e depoimentos relativos à situação cultural brasileira e com expectativas para os próximos vinte anos. A diretora teatral mineira Regina Bertola, do grupo Ponto de Partida, resume bem a questão dessa travessia pelo potencial da multirregionalidade e da cooperação: “Temos de aprender a conhecer nossa produção cultural nas dimensões continentais que ela tem e com a diversidade com que se configura (…) Temos de construir uma relação de parceria, não de concorrência” (p. 353).
O empresário paulistano Bazinho Ferraz, da XYZ Live, delineia as margens dos três tempos abordados no guia. Olhando para trás, lembra que há 20 anos, quando o Brasil ainda vivia seu processo de abertura política, “apenas a televisão brasileira estava mais alinhada às novas tecnologias” (p.300), e, olhando para frente, antecipa que, nos próximos 20 anos, o grande gargalo da produção cultural será a educação da nova classe média de consumo, para que passe a ser mais exigente, “tornando a bilheteria proveniente desse público a grande fomentadora de novas ideias” (p.302).
O debate é bom e a nova edição do “Guia brasileiro de produção cultural” está bem animada de opiniões. Enquanto Bazinho Ferraz assegura que “O Brasil nunca esteve em momento melhor” (p.301), a dramaturga baiana Aninha Franco afirma que “O Brasil não está em boa fase para a produção cultural” (p.300). Para ela, enquanto um produtor cultural de 20 anos atrás acreditava em seu produto, hoje, “ele só acredita nas verbas dos editais e na curadoria dos festivais” (idem). A produtora teatral paulista Fernanda Signorini endossa esse pensamento: “Hoje em dia somos praticamente escravizados pela captação de recursos (…) isso devido a vários distúrbios no mercado, desde supervalorização dos serviços e materiais pagos via leis de incentivo, até falta de formação de novas plateias” (p.316).
Sobre o tempo presente, o radialista e produtor gaúcho, Fernando Rosa, louva a democratização da produção musical com o advento da internet e “a quebra do paradigma do ser artista, que deixa para trás a busca do estrelato e procura estruturar-se de acordo com sua realidade e expectativas” (p.318). Segundo ele, que vive em Brasília, onde edita a revista virtual “Senhor F”, o que pode ter se perdido nas últimas décadas talvez seja “um pouco de qualidade estética, artística, compensada pela quantidade da produção” (idem).
Em que pese à luta para a produção de projetos para editais, nota-se claramente uma preocupação de alguns entrevistados com o esmorecimento da ousadia no país. Ao comparar o antes com o agora, o curador e diretor artístico carioca Marcello Dantas, da Magnetoscópio, recorda que “havia um espírito mais empreendedor e pronto a correr riscos que hoje, de certa forma, não tem mais. Todos fazem projetos como se fossem encomendas, com cliente e incentivo fiscal” (p.330). O compositor e cantor paulistano Maurício Pereira reforça: “Vejo pouca gente do ramo se dispondo a correr riscos (…) tenho a sensação de ver em todo canto despachantes especialistas em achar o acesso a dinheiros públicos, em achar (e vender) os mapas das minas. Parece que ter um bom projeto ficou mais importante que ter uma boa canção, uma bela peça, um grande filme” (p.332).
A produtora catarinense Eveline Orth entende que “O business ainda é que manda no mercado artístico brasileiro” (p. 315). E a atriz mineira Bete Coelho completa: “Hoje, o Brasil está em excelente momento para a produção de entretenimento, porque é mais rentável, mais consumível e mais palatável. Já em relação à produção cultural, contudo, estamos vivendo um período de estagnação e sem perspectivas” (p.303). De Salvador, o compositor e cantor Peri alerta: “A tecnologia foi a salvação, mas é também o perigo. Ela também cria disfarces e mentiras” (p. 348).
Bom, esses são alguns trechos de um debate que está no ar. O produtor pernambucano Paulo André, criador e diretor do Abril Pro Rock, está, assim como eu, convencido de que “Há uma nova música brasileira sendo produzida, como nunca, mas ignorada” (p. 342). Faço minhas também as palavras de Danilo Miranda: “O volume maior de eventos artísticos aprofundou a necessidade de criar ações educativas de mediação com os conteúdos apresentados, como forma de ampliar os públicos e incentivar as práticas culturais (…) Disponibilizar ao público maior diversidade de opções (…) conteúdo cultural de qualidade dentro de um processo de educação permanente” (306 e 398). Vale conferir.