Publicidade e política
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno3, pág.2
Quinta-feira, 07 de março de 2013 – Fortaleza, Ceará, Brasil
O filme “No” (Não), do diretor chileno Pablo Larraín, é uma ágora lotada para quem se interessa pelo debate sobre cidadania, com cadeiras especiais aos que gostam da relação da publicidade com a política. Trata-se de uma bem articulada ficção histórica sobre o plebiscito de 1988, convocado pela ditadura militar chilena, na tentativa de se legitimar no poder, dentro de uma circunstância internacional que pedia cenários democráticos, e de assegurar por mais oito anos a presidência do país nas mãos do sanguinário general Augusto Pinochet (1915 – 2006), que completava, então, 15 anos no poder.
Protagonizado pelo ator mexicano Gael García Bernal, que interpreta René Saavedra, o publicitário que se destacou na vitoriosa campanha do “Não” à permanência do ditador Pinochet, “No” é uma adaptação da peça de teatro “O plebiscito”, escrita por Antonio Skármeta, mesmo autor da novela “O carteiro e o poeta”, que também virou um maravilhoso filme (1994) do cineasta indiano Michael Radford, sobre a relação respeitosa e pura entre Pablo Neruda (1904 – 1973) e o carteiro Mario Jimenez, que sonhava em escrever e se tornar poeta.
Em ritmo de conversações opostas (inclusive entre coligados), em atmosfera de calibragem de tensão e com luminosidade em razoável grau de pureza, o filme mostra como, nem para marqueteiros nem para políticos, não é fácil fazer publicidade em uma situação política tão complexa e delicada: de um lado, programas do “Não”, com 15 minutos diários e, do outro, programas do “Sim”, também de 15 minutos diários, mas respaldados por 15 anos de mensagens autoritárias unidirecionais. Embora com o espectador sabendo antecipadamente que o “Não” ganha no final, o “como” as coisas acontecem é que dá sustentação à narrativa.
A campanha do “Não” tem como alvo o pensamento não oficial e aproveita o estado coagido das pessoas para afirmar que “sem a ditadura a alegria vai chegar” ou que o “Chile somente será grande quando um chileno não tiver medo de outro chileno”. Por isso, anuncia: “Sem violência e sem medo, vote não”. E um jingle, desses bem grudentos, cantado em coro, dá o ultimato: “Não, eu não gosto / Não, eu não quero”. No último programa da campanha do “Não” o apresentador encerra dizendo assim: “A partir deste instante você voltará a conhecer novamente só a opinião oficial”.
A campanha do “Sim” foca na prosperidade da doutrina neoliberal. Manter Pinochet é apostar em “um país ganhador”. O argumento para o autoengano é o de que “cada trabalhador pode se transformar em um proprietário e não em um proletário”. Dentro da proposta de desconstruir o “Não”, mostra um rolo compressor passando por cima de eletrodomésticos e de carrinho de bebê, e uma voz que alerta que “no país do não, não há respeito por seus bens nem por seu futuro”. Na noite de encerramento do último programa, aparece um casal na cama, com um homem tentando seduzir uma mulher e ela resistindo: “Não, amorzinho, não”. Ele insiste e, finalmente, ela diz “Sim”. No que ele se vira para a câmera e repete exageradamente: “Sim!”. Ao fundo uma voz diz que no outro caso isso termina em “Não”.
Para evitar choques estéticos na fusão das filmagens em 2012 com a qualidade das imagens reais veiculadas pela televisão em 1988, o diretor optou pela produção audiovisual com equipamentos de época e fitas de gravação U-Matic, ajustando as duas horas de projeção a um perfil retrô, capaz de transmitir sensação de autenticidade. O resultado final traz um quê do documentário “A revolução não será televisionada” (2003), dos cineastas irlandeses Kim Bartley e Donnacha O’Briain, sobre o golpe relâmpago ocorrido na Venezuela, em 2002, contra o presidente Hugo Chávez (1954 – 2013), quando fizeram registros de história em tempo real no interior do palácio Miraflores.
Um aspecto que me pegou positivamente de surpresa foi a descoberta de que “No” passa é longe de preocupações sobre peças publicitárias criativas e de algo que pretendesse deslumbrar o espectador. Ele rompe paradigmas no que diz respeito ao posicionamento de comunicação tomado, em favor da leveza, da descontração e da promessa de um lugar mais feliz, caso ganhasse a negação da continuidade do general Pinochet na presidência. Depois de 15 anos de silêncio forçado, é normal que qualquer um queira dizer tudo, colocar para fora os ressentimentos, pensar em revanche e espalhar outras verdades.
Os argumentos em favor de outra forma de mobilizar, de seduzir, de emocionar, de envolver e de convencer as pessoas a votarem no “Não” é o ponto nevrálgico desse filme. A conquista de Saavedra está na exteriorização do discurso que projeta o país para frente, para o que o sonho está apto a abraçar, e não cair na tentação da exploração dos desaparecidos, dos torturados, dos mortos, da violência e da estética da dor, assustando eleitores. Este posicionamento me parece ser o grande mérito da inteligência de convencimento da campanha.
Apesar de vencedora, a campanha do “Não” certamente não aguentaria um exame razoável de criatividade em suas peças publicitárias. A escolha de recurso universal atraente e alienante, não para contraditoriamente produzir consciência, mas para sensibilizar pessoas de todos os níveis sociais a reagirem em favor do propósito da campanha, aproximou apelo publicitário e expectativa de cultura de massa. Nesse sentido, o sucesso do “Não” simbolizou um ponto de inflexão entre a ubiquidade da ditadura e o desejo restrito da maioria do povo chileno, vítima de um poder de exceção.
Estive no Chile em meados dos anos 1990, poucos anos depois da vitória do “Não”, e senti claramente as reminiscências do medo nas pessoas. Pouca gente tinha a coragem de pronunciar o nome do ditador Augusto Pinochet em público. E, nessa época, o trágico general já tinha passado a presidência do país para o democrata cristão Patrício Aylwin, um dos apoiadores do golpe militar que derrubou a tiros de canhão o presidente eleito Salvador Allende em 1973, sob patrocínio dos Estados Unidos, conquanto seguia exercendo a função (criada por ele para si mesmo) de senador vitalício e de chefe supremo das forças armadas.
Além da pressão psicológica sofrida pelos militantes do “Não” e por quem quer que revelasse intenção de voto contrário à vontade do ditador, o governo procurou reprimir policialmente manifestações e desestabilizar René Saavedra, com telefonemas de madrugada, assustando inclusive o seu filho, personagem discreto no enredo em que aparece repetidas vezes o seu autorama, como energizador de inspiração do pai. Nos videotapes do “Sim” o próprio ditador aparece para falar da sua “história de serviços prestados à pátria” e convocar a nação a aceitá-lo.
Na condição de freelancer em uma agência de publicidade, Saavedra se vê diante de um problema adicional e particular: seu chefe faz parte do grupo do “Sim” ao regime fechado instalado no país. Esse confronto de caráter democrático aparece também nos bastidores do filme com o próprio diretor Pablo Larraín, que é filho de um senador ligado a Pinochet e de uma ex-ministra do atual presidente Sebastián Piñera, que, por sua vez, foi uma espécie de articulador do general e, hoje, como presidente do Chile, mandou retirar dos manuais escolares de história as referências aos 17 anos da ditadura Pinochet.
Essa preciosidade do cinema latino-americano estará em cartaz em Fortaleza no período de 8 a 14 deste mês no Cinema de Arte do Multiplex UCI, do Iguatemi, com classificação indicativa de 14 anos. No próximo sábado (9), às 10:45, o sociólogo Pedro Albuquerque Neto, que estava exilado no Chile quando houve o golpe militar que derrubou o presidente Salvador Allende (1908 – 1973), e eu somos os convidados para o tradicional debate que se realiza, sob a coordenação do jornalista Pedro Martins Freire, logo após a sessão.