O momento em que na infância nos percebemos diferentes dos outros é conflitivo, e tratar desse assunto requer situações simbólicas com as quais a criança possa dialogar longe das pressões da racionalidade instrumental. Lidar com a individuação, com o outro que somos nós, é um dos desafios do crescimento e uma das questões mais sensíveis da construção da moral social.
A literatura infantil tem um papel fundamental na missão de facilitar que meninas e meninos se encontrem consigo mesmas e abracem as demais na dinâmica do diferente e das diferenças. Em “Flicts”, do cartunista mineiro Ziraldo, e em “Macaco Danado”, da escritora inglesa Julia Donaldson, essa mediação se dá pela linguagem conotativa, mais facilmente acessada pelas crianças.
O recurso da sutileza no tratamento de tema tão complexo está na base do texto e das imagens de “Tudo bem não ser igual” (Saíra, 2020), livro de estreia da professora paulista Roselaine Pontes de Almeida na literatura infantil, com ilustrações de Michelle Duarte, que é educadora infantil da rede municipal de ensino de São Paulo.
Esse é o tipo de livro que contribui para que a criança encontre significado de leitura. A protagonista é uma arraia que não está indo a lugar algum, apenas flana pelas águas como quem não quer nada, a não ser nadar. No percurso nota que não tem o contorcionismo da enguia nem a leveza dançante das águas-vivas e das anêmonas.
Nada que nada e percebe que a tartaruga-marinha está sempre em casa, mesmo quando passeia, e se sente mais diferente ainda ao deparar com um cardume de peixinhos coloridos. A constatação de que é única e de que todos são únicos e especiais demora a acontecer, mas é um alívio quando sobrevém. A criança que segue a arraia segue a si mesma e também pode aclarar sua ansiedade por ser diferente.
A moral dessa fábula não é de bem e de mal, nem de certo e de errado, mas de revelação do segredo de sermos todos iguais porque todos somos diferentes. É uma fábula que tem seu reino distante no fundo do mar; um outro mundo que, como as criaturas, se mostra igual nas diferenças que enriquecem a natureza e a humanidade.
O desassossego que vai se formando na mente da arraia no seu encontro com os mais variados seres marinhos possibilita que a criança deixe escapar seus sentimentos encobertos. A ideia da arraia protagonista é ótima porque é um peixe bem diferente da noção que normalmente se tem de peixe. Tudo isso proporciona o despertar para a autovalorização e para o reconhecimento e o respeito às diferenças.
A autora não entra em dispersões do tema abordado e, com simplicidade, dá ênfase ao corpo e suas expressões como ponto para a atenção da criança. “Tudo bem não ser igual” é um livro de poucas páginas que deve ser folheado muitas vezes, tanto em leitura compartilhada com o adulto quanto por repetição individual da leitura e pelo leitor infantil.
Neste tipo de literatura, o melhor que o adulto faz é não ficar interpretando as situações para a criança, não ficar explicando nada. Deixa ela nadar sozinha como a arraia, reproduzindo palavras ouvidas e inventando outras não escritas, na montagem da compreensão de si, fazendo com que a cada leitura novas percepções se sedimentem dando sentido positivo ao indivíduo e à diversidade.