Quando se pensa no futuro…
Artigo publicado no Jornal O POVO, Caderno Vida & Arte, pág.4
Quarta-feira, 15 de janeiro de 2014 – Fortaleza, Ceará, Brasil
FAC-SÍMILE
A ideologia do que seremos tem sido um artifício retórico colocado em favor de tudo seguir como está. Se minha suposição estiver correta, as mudanças estruturais necessárias a uma vida melhor, mais justa e mais divertida passam pelo colapso da ideia de futuro como proteína do metabolismo cultural da humanidade. O futuro ideologizado é o responsável pela fantasmagoria que tira a naturalidade do imprevisível. Ele está para a morte do presente como a paz está para a justificativa da guerra.
Um dos principais raciocínios amplamente divulgados sobre a questão do crescimento demográfico, como ponto crítico do futuro, é o problema da alimentação em um planeta superpopuloso. Em tese, está tudo correto, mas na prática esse argumento serve para fortalecer os projetos do agronegócio, na substituição das florestas por áreas de pastagens e campos mecanizados de produção agrícola em grande escala, o que vem gerando ilhas de comunidades pobres no meio de oceanos de grãos.
A palavra mais característica da oratória do futuro é sustentabilidade, uma tipificação institucional das organizações, que ganhou onipresença nas mesas de debates, abrangendo tudo e não conseguindo dizer quase nada. É um caso de urgência social o repensar do que se pensa do futuro. A não atenção a essa estratégia de manutenção da ordem estabelecida pelo discurso do futuro tende a, paradoxalmente, fomentar um erro de visão que deixa sem rumos o sentido de humanidade. O futuro de fato depende mesmo é do respeito com que se tratam as coisas do presente.
A recessão utópica que vivemos resulta da falência dessa noção de futuro que nos impõe um endividamento do presente, como um pecado original de agiotagem da concentração de renda, de poder e de acesso privilegiado a bens simbólicos. Veja-se o caso da ideia de viver sem dinheiro. Este tempo já chegou, é um futuro que virou rotina. Não no sentido de dar às coisas o seu valor representativo de gozo, de uso e de troca, mas o valor aleatório da moeda para transferência de valores e pagamentos digitais mensuráveis, estes intangíveis e sem lastros reais.
A vulgata do futuro está nos fundamentos da ilusão da prosperidade, um tipo de devaneio que muitas vezes atropela a qualidade de vida inspirada no que é necessário e no supérfluo comedido. Tanto que a ideia de futuro contida no escasso debate sobre explosão demográfica está centrada em correções históricas de injustiças e equivalência na busca da qualidade de vida, diga-se de passagem, orientada pelo consumismo, talvez o mais danoso dos fatores responsáveis pelo esgotamento dos recursos não renováveis do planeta. Isso é o mesmo que querer ter no futuro algo que já deveria estar arquivado como lição negativa do passado.
O discurso da economia criativa, da forma novidadeira com que trata a mais antiga economia do mundo, é o do oferecimento de um paraíso de oportunidades para que cada pessoa seja o seu próprio patrão, quando, de fato, o que move essa proposta é a busca de controle, por parte das corporações da nova economia, dos meios de geração de direitos autorais e de qualquer propriedade sobre marcas e patentes, do mercado de conteúdos, baseado na criatividade, na aptidão e no talento.
É famoso o pensamento da escritora neozelandesa Katherine Mansfield (1888 – 1923) sobre o futuro. Ela dizia que, de tanto juntar e esconder coisas para quando chegasse um longo inverno, tinha a mente parecida com a de um esquilo. Por que tanta gente faz isso se podemos ir além do instinto de sobrevivência? É que temos medo do grande inverno do futuro, de não termos sequer dinheiro para o plano de saúde, para os remédios e para pagar um cuidador quando estivermos velhinhos diante de um sistema que permite à medicina transformar até comportamentos normais em doenças.
O condicionamento tradicional ao senso de futuro é que vem matando cada vez mais o tempo da infância, em nome da preparação das crianças para a vida adulta. Esse conceito perverso diz que a criança pertence à geração seguinte e que, portanto, precisa, acima e antes de tudo, ser preparada para o futuro. Trata-se neste caso de uma questão ideológica geracional, mas, em sentido lato, o futuro é uma questão moral e política que vai e volta, em movimentos cíclico-conjunturais. Em 1989, a queda do muro alemão decretou o fim do comunismo e, em 2008, o estouro da bolha imobiliária estadunidense fez o capitalismo relevar que acredita mesmo é no Estado forte e protetor. E tudo seguirá assim, até que se resolva acabar com essa ideologia do futuro.
Para não dizer que ninguém tentou ainda pôr em prática uma experiência imediata de futuro, cito o caso de Nelson Fortunato, o homem que trabalhava como divulgador de utilidades públicas em alto-falantes na cidade de Nova Europa, interior de São Paulo. No dia 24/11/2009, os ouvintes da radiadora que ele controlava ouviram sua voz dizendo assim: “Estou anunciando o meu falecimento. Falecimento de Nelson Fortunato. Como foi gravado com antecedência, não tem a hora do enterro, mas o mais importante é que todos saibam que morri”. Fortunato pensou no futuro como um fato real, não por profecia, mas pela sabedoria espirituosa da simplicidade.