Quarta-feira de cinzas
Artigo publicado no Jornal O POVO, Caderno Vida & Arte, pág.4
Quarta-feira, 5 de março de 2014 – Fortaleza, Ceará, Brasil
FAC-SÍMILE
Primeiro dia após o Carnaval, a quarta-feira de cinzas é um bom momento para pensarmos em questões da nossa essência enquanto pessoa. As cinzas, na tradição cristã, compõem uma mensagem de que “do pó viemos e ao pó voltaremos”. Somos nada e somos tudo. Por isso mesmo, forçar o que sobrou da fantasia ou do retiro do feriadão é cair na armadilha da saudade do que passou, enquanto há um ir para frente que pede passos seguintes.
Particularmente, tenho andado com uma certa dificuldade de aceitar relações com personalidades artificiais. Prezo demais o valor da palavra e do respeito ao combinado para me submeter aos caprichos do falso-self. Tenho a esperança de que muita gente também pense assim. Não me sinto só. Apenas fico indignado quando deparo com situações de falta de compromisso estandardizadas em pessoas perdidas nos labirintos da falsidade e do narcisismo.
Quando isso acontece, fico a me perguntar quem são essas pessoas de mentira, que se acham poderosas simplesmente porque são capazes de aplicar golpes baixos nos outros. Dá para notar que são pessoas que sempre aparecem esbanjando incapacidade de serem elas mesmas em deformações de criatividade, imaturidade para a independência e desejos de se afirmarem por algum tipo de autorrepresentação.
Por não acreditarem em si, escondem o que poderiam ser e não se enxergam. Se não dá para saber o que buscar, fica difícil pensar em para quê. Eis o mantra da quarta-feira de cinzas. Passado o Carnaval, não se chega a um caminho contrário. A inversão da festa não tira a qualidade do que temos a fazer. Não existe ressaca que nos impeça de nos apresentarmos como realmente somos, mostrando a cara, assumindo nosso jeito de viver, integrando experiências e descobrindo o que tendemos a ocultar.
À frente dos nossos impulsos individuais e coletivos, como espécie humana e como indivíduos transcendentais, tudo pode até parecer igualmente aniquilado e despedaçado, mas o que vale é não perdermos a potencialidade de ser alguém. Nessa situação, não temos o direito de ceder espaço aos mecanismos de defesa próprios das pseudoconstituições das pessoas que falam da boca para fora, com o intuito de agradar à própria ausência.
Não podemos desanimar nem perder a coragem de ser diante da ameaça invasiva do não-ser. Em “Vivendo num país de falsos-selves” (Casa do Psicólogo, SP, 2003), o psicanalista pernambucano Júlio de Mello Filho aborda aspectos da realidade sócio-política-cultural à luz do tema do falso-self descrito por Donald W. Winnicott (1896 – 1971). Para o pensador inglês, o falso-self é aquele indivíduo que tem a tendência de sempre se adaptar ao ambiente e de exibir uma falsa existência, de poucos valores e plena de futilidades.
Entendo que a quarta-feira depois da folia ou do descanso não é dia de reparação, já que a vida continua em sua rotina nem mais nem menos verdadeira. Mello Filho diz que “o sucesso profissional é o campo privilegiado do falso-self (…) a realização pessoal fica para trás. E há uma ciranda das profissões, as do momento, as que não têm um lugar no mercado e na mídia” (p. 175). Assim, passado o feriado, em muitos fica a sensação de experiência irrecuperável.
No Brasil temos um sério problema de cultura do falso-self em idealizações consumistas travadoras do fluir das possibilidades de sermos o que gostaríamos de ser enquanto comunidade de destino, e não apenas o que somos na larga utilização de processos de imitação e hipertrofia das intervenções de uma realidade sempre exterior.
O caso dos jovens que compram aparelhos de dentes de camelôs, com a finalidade de se sentirem sorrindo com o riso dos que podem pagar um tratamento de ortodontia, é emblemático na tradução do que significa uma sociedade ascender ao mundo do consumo, sem, no entanto, ter a oportunidade de acesso à cultura que não a do sistema de entretenimento e de promoção da felicidade nos objetos.
Antes do carnaval, rolou uma polêmica com relação às camisetas de duplo sentido lançadas pela Adidas para a Copa do Mundo 2014, realizada pela Fifa no Brasil. As blusas sugerem amor ao Brasil com, digamos, inspiração sexual. A camiseta com a estampa “I love Brazil” (Amo o Brasil) traz um coração verde e amarelo em forma de bunda com biquíni fio dental. Em outro modelo, a imagem de uma moça de biquíni em frente ao morro do Pão de Açúcar abre os braços para receber a frase: “Lookin’ to score” (em busca de fazer gols), em uma insinuação barata de “cópula”, e não de copa.
É realmente lamentável ver um país com a diversidade cultural e natural do Brasil ser resumido a estereótipos como esse do apelo sexual. Mas não dá para culpar o olhar estrangeiro por isso. A própria ministra da cultura, Marta Suplicy, ficou conhecida na sua passagem pelo Ministério do Turismo (2007) pela célebre frase “relaxa e goza”, pronunciada como sugestão do que se deveria dizer aos turistas de outros países diante das dificuldades dos nossos aeroportos. Fica difícil de ser respeitado quando tratamos as coisas assim. Não nos damos respeito e queremos ser respeitados.