Houve momentos em que até precisei parar de ler o livro “Tom Zé – o último tropicalista” (Ed. Sesc, 2020), do jornalista italiano Pietro Scaramuzzo, mas não tive condições de fazer isso porque a leitura me agarrou de um jeito que fui inteiriço até o fim. Depois de me embrenhar no correr da vida e da lida desse grande artista brasileiro, entendi por que ele mesmo declara na abertura de sua biografia que leu tudo de uma sentada só.
O biógrafo utiliza a própria flexibilidade da crônica, da qual o biografado se vale para compor, como recurso para narrar uma história de juventude perene e de muitas gambiarras, que é também parte significativa da história da música brasileira. O autor desenvolve com inspirada leveza a trajetória de experimentações cotidianas do músico iraraense, desde a infância, enxertando com naturalidade causos hilários e dramáticos.
Tom Zé é apresentado ao leitor como alguém que a todo instante se sente desafiado a ir além do espaço social no qual foi lançado quando chegou ao mundo e por onde se lançou respirando arte como se estivesse tendo uma crise de asma, como se sentisse falta de ar nos padrões musicais estabelecidos pela indústria fonográfica.
O mercado da música tende a sufocar os espaços de criação e de apropriação de quem não se enquadra em seus perfis de produção e de consumo. Mas Tom Zé é um invocado que aprendeu a passar Vick Vaporub no peito da criatividade e a caçoar da realidade para fazer uma arte impulsiva, premiada internacionalmente e destacada por mídias musicais prestigiosas como a revista Rolling Stones e o portal Pitchfork.
David Byrne, etnomusicólogo escocês, que tirou Tom Zé do ostracismo, afirma no livro de Pietro Scaramuzzo que sua concepção da música popular mudou definitivamente quando ele conheceu o artista baiano. É impactante mesmo escutar a obra de alguém que tem consciência do seu defeito de fabricação e que utiliza o método de confundir para poder esclarecer, assumindo a afronta de pensar e de sofrer de juventude.
Por isso o sentido do título me parece insuficiente. É inegável a riqueza da construção nordestina e sudestina da Tropicália. A cena de Caetano Veloso mostrando a Tom Zé o que São Paulo oferece de liberdade estética é muito preciosa. Foi incrível, mas ele não ficou agarrado a isso; até porque o Tropicalismo, segundo Tom Zé, faz parte de um “lixo lógico” que tem raízes na Península Ibérica quando conquistada pelos árabes há mais de dez séculos.
A história de Tom Zé é a travessia e a travessura de um espírito inventivo que estrebucha para se realizar, tenha sido ouvindo o canto das lavadeiras de roupas de Irará, apreciando o espetáculo de venda do ‘homem da mala’ nas feiras do interior, descobrindo no futebol que ‘jogar com a cabeça’ quer dizer ‘jogar pensando’, contando com décadas de cumplicidade da sua amada Neusa ou em zanzares pelo mundo testando a máxima da escola koellreuteana de que o absolutismo na música pode ser quebrado.
Tom Zé, que está beirando os 85 anos, continua produzindo uma música excepcional em vocábulos, sonoridades e temas, numa sequência que passa pelo questionamento do progresso que tornou a felicidade um produto de consumo, do prostiturismo, da entrega do corpo e da mente aos pincéis da eletrônica e do desaparecimento da letra A, que vem gerando uma sucessão de palavras impronunciáveis.