Quer um 2016 menos odiento?
Artigo publicado no Jornal O POVO, Caderno Vida & Arte, pág.4
Quarta-feira, 30 de dezembro de 2015 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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FAC-SÍMILE

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A maioria das pessoas deseja viver em situação de paz. Apoiado nessa compreensão, refleti sobre a contraditória razão da prevalência de um sentimento odiento pregado por minorias nas redes sociais, nas mídias de massa e em muitas rodas de conversas.

A intermediação dos atos de fala, quando estabelecida nos próprios enunciados, restringe-se a um dizer para outro dizer, sem a necessária transmissão consciente do que foi informado. Mesmo tendo esse tipo de ação o propósito de revelar algum posicionamento, o normal, nesses casos, é que ela cumpra apenas a função de ponte para palavras de ordem em discursos indiretos e constantes que dominam o campo social.

Sobre essa dinâmica dos pressupostos implícitos, os pensadores franceses Gilles Deleuze (1925 – 1995) e Félix Guattari (1930 – 1992) chegaram à conclusão de que existem muitas paixões em uma paixão e todos os tipos de voz em uma voz, o que nos deveria levar a certos cuidados quando, mesmo em nome de um exercício de cidadania, multiplicamos compulsivamente enunciados grupalmente consagrados.

Tudo o que contribuímos para existir sedimenta o agenciamento coletivo. No Brasil de agora, as tentativas de divisão do país entre tucanos e petistas são bem traiçoeiras porque vão apagando as nuanças da vida política e reduzindo as possibilidades de alternativas pelas quais se pode optar enquanto sociedade democrática. Os riscos dessa divisão maniqueísta é algum tipo de fascismo, nazismo, stalinismo ou permanência no consumismo azul ou vermelho.

Para Deleuze e Guattari, a natureza de ideologias assim nivela todas as suas dimensões em um mesmo plano de pressuposições recíprocas e inserções mútuas. A orquestração de visões supostamente do interesse comum perturba o sentido de fonte, mediação e replicação desde os âmbitos econômicos e políticos até os de justiça e culturais. “Minoria e maioria não se opõem apenas de maneira quantitativa (…) A maioria supõe um estado de poder e de dominação” (Deleuze e Guattari, p.55, Mil Platôs – Capitalismo e esquizofrenia 2. São Paulo: Editora 34, 1995).

Essa abordagem explica parte da busca comum de ser maioria, mesmo quando em condição numericamente menor. Deleuze e Guattari ilustram esse paradoxo dizendo que, por aparecer na constante e na variável da qual se extrai a constante, o homem tem a maioria, embora em menor número do que os mosquitos.

O que dá a muita gente a compulsão de compartilhar tudo o que à primeira vista parece encaixado no agendamento coletivo é a dificuldade que temos de ser minoritários, de estar fora do sistema hegemônico. É aqui onde mora a semente do ódio vicejante em tempos de degradação nas relações sociais. Ao tentarmos subir no vagão do trem que nos parece mais seguro e confortável, esquecemos que sem minorias, sem divergências, abrimos mão da perspectiva transformadora.

As minorias, segundo Deleuze e Guattari, não devem ser vistas apenas como coisa de gueto, mas como germes, cristais de devir, que só valem enquanto detonadores de mudanças quando se assumem fora da média. Não ter ansiedade de aceitação na maioria é, portanto, um gesto simples que pode começar com mais atenção ao que andamos compartilhando e um passo para termos um 2016 menos odiento.