Rainha branca do maracatu
Artigo publicado no Jornal O POVO, Caderno Vida & Arte, pág.4
Quarta-feira, 04 de janeiro de 2017 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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FAC-SÍMILE

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O maracatu cearense é um fenômeno cultural bom de sentir, mas difícil de descrever. Só quem abraça e vivencia a sua negritude tisnada é capaz de articular os mitos e ritos dos seus ritmos falantes e falas musicais. Nele, a essência está mais na importância do afro como matriz da brasilidade do que na cor da pele dos brincantes.

O livro-CD “Maracatus, Afoxés, Coroações, Rezas e outros Batuques” (Memória Cantada, 2016), que a compositora, cantora e tiradora de loas Inês Mapurunga vai lançar no próximo dia 15, às 18 horas, no Cineteatro São Luís, traz essa força de uma África que é também mãe do Brasil.

Em 3 discos com 48 cantigas e um livro de beleza artesanal, a autora invoca os terreiros de fé, que pedem conselho e cura; o nosso apetite, que pede sabores; e o nosso amor, que pede paixão e ternura ao calor maternal das africanidades, a quem os maracatus pedem a benção.

A voz suave de Inês, saída do coração de quem vive esses cortejos dentro de si, desfila ao lado de cantores, de brincantes e do rabecar da filha Marina. Pinturas naïf de Cantídio Brasil enchem as páginas de figurais, em cenário de plasticidade heliocêntrica, com plantas e plumas, totens e carnaubeiras copérnicas.

Grafismos de Descartes Gadelha lembram pequenos selos, decalques, chaveiros e enfeites em uma iconografia de instrumentos, personas, indumentárias, adereços e insígnias do imaginário cosmológico e cosmogônico constitutiva do enredo social libertário expresso na teatralidade do maracatu cearense.

Inês oferece gentilmente textos norteadores do sentido da sua obra musical de fibra temperada nas ruas em 20 anos de participação nos desfiles de maracatu de Fortaleza. São loas e toadas que revolvem sons e símbolos sonoros de toda uma ancestralidade afro que corre nas veias por baixo de sua pele branca.

Quase todas essas músicas foram compostas em parceria com o percussionista, artista plástico e carnavalesco Descartes Gadelha. Algumas ela assina sozinha, e tem um precioso rancho alegre resgatado da década de 1960, “Batuque Meu”, composta por Descartes Gadelha e Benson Queiroz.

A sonoridade do canto e dos batuques que regem a pulsão dos maracatuqueiros tem o que o semiólogo venezuelano Víctor Fuenmayor destaca em suas pesquisas sobre dança africana, quando diz que o tambor é um dos instrumentos que mais chegam diretamente ao cérebro, sem necessitar passar pelos sistemas conscientes.

Contagiada por esses encantos percussivos, sua estética rítmica, sua poética e seus toques sagrados, Inês Mapurunga revela que cantar em maracatu e afoxé é, para ela, “uma forma de rezar”. Nos laços espirituais desse sincretismo sonoro, ela entoa batuques que percutem e repercutem as misturas do negro, do índio e do branco em estilos e formas rítmicas que se estendem de baiões de maracatu a coco de praia.

Inês Mapurunga refere-se ao coletivo de diversidades do maracatu cearense como um “Quilombo Cultural”, pelo seu histórico de ambiente aberto ao acolhimento multiétnico, no qual dança a fraternidade indígena e a sensibilidade cabocla e cafuza de homens que sempre deram o melhor do seu feminino ao brilhar dos cortejos. É neste mundo de brincantes livres que ela compõe e tira loas com a serenidade e a grandeza de uma rainha branca de alma negra.