Raul Seixas não morreu
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno3, pág.3
Quinta-feira, 14 de Junho de 2012 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Nunca duvidei da lenda de que, assim como o rei do rock estadunidense, Elvis Presley, o rei do rock-baião brasileiro, Raul Seixas, também não morreu. Ambos têm datas oficiais de nascimento e morte: Elvis (1935 – 1977) e Raul (1945 – 1989). Os dois foram considerados falecidos com pouco mais de quarenta anos, mas os sósias e os imitadores de um e de outro são tantos que eles seguem vivos entre rumores e aparições.
Raul entrou para a vida artística recorrendo a características e trejeitos do ídolo Elvis, tipo a gola da camisa levantada e o modo estilizado de andar. Não virou cópia porque tinha uma experiência cultural muito rica, sintetizada na arte de outro mito da música que não morreu: Luiz Gonzaga (1912 – 1989). Com este, não apresenta a semelhança de viver pouco anos, mas a de morrer no mesmo ano de 1989.
Talvez um dos segredos de Raul Seixas não ter morrido esteja na consideração que ele sempre teve pela morte. “Oh, morte, tu que és tão forte / que matas o gato, o rato e o homem/ vista-se com a tua mais bela roupa quando vieres me buscar” – “Canto para a minha morte” (Raul Seixas / Paulo Coelho). E ele foi ouvido e sua prece considerada, pois pouco antes de encerrar a autonomia dos movimentos do corpo, foi ovacionado num show em Brasília, ao lado do parceiro de última turnê, Marcelo Nova.
Há tempos que eu não dedicava atenção especial à obra de Raul Seixas. Aqui acolá ouvia meus filhos escutando “o meu egoísmo é tão egoísta/ que o auge do meu egoísmo é querer ajudar” – Carpinteiro do universo (Raul Seixas / Marcelo Nova). Foi então que fomos ver juntos o emocionante documentário “O início, o fim e o meio”, de Walter Carvalho, contando com imagens de arquivo, depoimentos de familiares, amigos, parceiros, produtores e pesquisadores, a saga existencial do “maluco beleza”.
A música e a alma inquieta de Raul Seixas fizeram parte da minha adolescência. Mais que isso, foram dez anos de intensa presença entre as minhas preferências de som. Começou com o lançamento do disco “Krig-ha, Bandolo” (1973), quando eu ainda morava no interior e o acompanhei em tempo presente, e entrou em fase de distanciamento logo após o episódio de quebra-quebra ocorrido no ginásio Aécio de Borba, em Fortaleza (1983), quando ele saiu do palco carregado por não conseguir se apresentar.
Naquele ano, o sucesso era “Pluct Plact Zum/ não vai a lugar nenhum (…) Mas ora vejam só/ já estou gostando de vocês/ aventura como essa eu nunca experimentei/ o que queria mesmo era ir com vocês/ mas já que eu não posso/ boa viagem” – “O carimbador maluco” (Raul Seixas). Sai frustrado por não ter podido ver o show e fui me desinteressando… me desinteressando, até o interesse ficar reduzido a lembranças.
Diante da tela de cinema do Pátio Dom Luís, percebi que em mim Raul também não morreu. Aliás, pensando bem, ele não morreu porque conseguiu ser e sintetizar em sua música a aversão aos exageros de uma sociedade que continua hipócrita e consumista. O seu primeiro grande sucesso é de uma atualidade assustadora: “Eu devia estar contente / porque tenho um emprego (…) Eu devia agradecer ao Senhor / por ter tido sucesso (…) Eu devia estar feliz porque consegui comprar um Corcel 73 (…) Eu devia estar sorrindo e orgulhoso / por ter finalmente vencido na vida / mas acho isso uma grande piada / e um tanto quanto perigosa” – “Ouro de tolo” (Raul Seixas).
A pressão da modelagem social o inspirava. Quanto mais ele estrebuchava dentro do sistema, mais revertia a situação de angústia a um estado de criação. Buscar alternativas parecia uma predestinação. Ele girava e pirava na luta enlouquecedora, ora entre o afastar-se de si e abrir-se ao mundo e ora afastar-se do mundo e abrir-se para si. Irreverente, contestador e mítico, Raul conseguia ter poder sobre a sua indomável genialidade, mas não conseguia ter controle de si. É difícil cantar o caos sem ser parte dele.
Raul Seixas bebia e fumava muito, mas passou a ser cliente fiel do mercado de drogas por insistência de Paulo Coelho. Quem afirma isso no filme é o próprio escritor de autoajuda, que foi seu parceiro expressivo. Sempre medindo as palavras e performando o arqueiro zen, Coelho aparece no documentário com o cuidado de quem não quer emprestar prestígio ao parceiro. O incrível dessa parte é que mesmo tendo sido o seu depoimento gravado na Suíça, onde normalmente não há moscas, a fala de Paulo Coelho foi perturbada por uma mosca.
Nesse momento fiquei pensando se aquela mosca não poderia ser o Raul Seixas tirando onda com o Paulo Coelho. “Eu sou a mosca que perturba o seu sono (…) Eu sou a mosca que pintou pra lhe abusar (…) Quem, quem é? / A mosca, meu irmão” – Mosca na sopa (Raul Seixas). Se ele não morreu, não terá custado nada essa irônica diversãozinha zoomórfica. Depois que trocou um só corpo para estar presente em cada fã, Raul virou também o que pode virar a imaginação.
Tomara que a incorporação da lenda no cotidiano dos seus admiradores mais fervorosos guarde alguns limites que o “maluco beleza” tanto prezava. “Minha mãe me disse tempo atrás/ onde você for Deus vai atrás/ Deus vê sempre tudo que cê faz/ mas eu não via Deus/ achava assombração/ eu tinha medo (…) Vacilava sempre a ficar nu lá no chuveiro/ com vergonha de saber que tinha alguém ali comigo/ vendo tudo que se faz dentro dum banheiro (…) Eu tinha medo” – “Paranoia” (Raul Seixas).
Não deve ter sido nada fácil produzir esse documentário. O mundo de Raul Seixas era e é naturalmente cheio de conturbações, feridas malcuradas e pessoas com temperamentos difíceis. O lado bom é que o seu valor como ícone dos contrastes sociais e a consistência da sua obra são incontestáveis. O filme mostra bem como ele catalisa as buscas por liberdade, os ímpetos emocionais e afetivos do amor, os anseios da espiritualidade e vários outros conflitos da condição humana.
Das muitas pessoas ouvidas, as declarações das ex-esposas e ex-amantes aparecem bem costuradas em suas idiossincrasias. Em duas parcerias com Paulo Coelho, “Medo da Chuva” e “A Maçã”, deixou claro para elas o que pensava sobre o assunto: “É pena que você pense que sou seu escravo / dizendo que sou seu marido e não posso partir / Como as pedras imóveis na praia / eu fico ao seu lado sem saber / dos amores que a vida me trouxe / e eu não pude saber” (…) “Se esse amor / ficar entre nós dois / vai ser tão pobre amor / vai se gastar”.
Dos relatos de parceiros, o que mais demonstra leveza e amizade sincera é o do compositor Cláudio Roberto, que, dentre outras, fez com Raul a música que virou sua marca. “Enquanto você se esforça pra ser / um sujeito normal / e fazer tudo igual / eu do meu lado / aprendendo a ser louco / um maluco total / na loucura real (…) vou ficar com certeza / maluco beleza (…) E esse caminho que eu mesmo escolhi / é tão fácil seguir / por não ter onde ir”. Cláudio cantou e contou bem-humorado da aventura do “raulseixismo”, que contestava sem precisar ser música de protesto.
Conta que quando Raul inseria trechos de rock estrangeiro em suas composições, argumentava que estava fazendo desapropriação. Eles fizeram juntos “Aluga-se”, música que sugeria com sarcasmo que a solução para os brasileiros era alugar o Brasil para os gringos. “Eles vão gostar / tem o Atlântico / tem vista para o mar / a Amazônia / é o jardim do quintal”. Por essas e outras, o filme de Walter Carvalho impõe referências, num momento em que corre solta a falsa ideia de que tudo é igual… a mesma coisa.