O título do filme apareceu na tela do monitor de streaming da nossa casa e chamou a minha atenção por parecer um pleonasmo: “Ficção Americana” (Prime Vídeo). Pensei comigo: “Mas tudo é ficção nos Estados Unidos, inclusive o que seria o nome do país, essa insistente tentativa de apropriação indevida do nome do continente americano”. Como o tema remetia a questões de negritude, refleti: “Deve ter alguma realidade nessa história”.

Adianto que valeu a pena ver esse drama existencial do diretor estadunidense Cord Jefferson, que tem o ator preto Jeffrey Wright, seu conterrâneo, no papel principal. O apelido do protagonista Monk, tirado de Thelonious Monk (1917 – 1982), um dos expoentes do bebop, remete bem o desenrolar da ação aos improvisos de poucas notas e às harmonias dissonantes dessa excepcional corrente do jazz.

Monk é professor de literatura e, ao comentar a antologia “O negro artificial”, com escritos da sulista Flannery O´Connor (1925 – 1964), uma aluna branca reage, argumentando que a palavra negro (que ela não pronuncia, usando apenas a letra “N”) é ofensiva, e sai da sala de aula. Como não era a primeira vez que temas associados a racismo, tratados por ele, geravam aquele tipo de incômodo, a universidade resolveu o problema demitindo o professor.

A outra profissão de Monk é a de escritor; entretanto, por ser um autor que prima pela autenticidade, sua produção, embora de qualidade, não é aceita pelas editoras sob o argumento de que não é ‘negra’ o bastante para vender. Indignado com o conceito imposto pelo mercado, voltado para conflitos identitários e dramas dos guetos, ele resolve escrever um livro-desabafo, cheio de palavrões e violências, como a indústria do entretenimento gosta de mostrar o povo preto.

A editora recebe a provocação com olhos de cifrões. A rejeição nua e crua e o desconforto agressivo de Monk têm tudo o que o mercado quer em seu movimento de posse oportunista das demandas sociais contra preconceito, racismo e injustiça, a fim de fomentar um debate que reduz as pessoas ao espectro de sua própria marginalidade e de tirar proveito comercial do espetáculo da irascibilidade.

A obra de Monk (Jeffrey Wright) não era ‘negra’ o bastante para vender.

O filme põe em questão o conflito autoral entre escrever o que move o autor ou o que o mercado pede como ponto de inflexão para o sucesso. Ao seguirem a orientação do mercado, autoras e autores de grande êxito têm apostado no essencialismo racial, de cujas tramas e traumas a falsa política se nutre, desde a tradição reacionária do nacionalismo nazista até a obsessão judaica pelo extermínio palestino.

Essa categorização racial, originalmente inventada por racistas, vale para literatura, cinema, fotografia, música, enfim, para todas as artes guiadas pela indústria do entretenimento e por editais públicos e privados que tiram benefícios econômicos ou políticos dessa manipulação. Identifiquei a contradição existente em tudo isso no artigo “O hip hop e a estética dos excluídos” (O POVO, 07/03/1999), momento em que a dança, a música e a poesia periféricas alcançaram o topo do consumo mundial: “Tem lugar para o rap, mas ainda não tem lugar para os habitantes dos guetos de onde vem o rap”. Houve mudanças nesse período, mas ainda muito insuficientes.

Nota-se em “Ficção Americana” um esforço para mostrar que a realidade afro-estadunidense é composta também por um pouco de humanidade, ao inserir no enredo problemas amorosos, familiares e financeiros do escritor. Tudo isso, claro, sem perder o tom dos nichos definidos pelo cartel da indústria cultural de massa. De todo modo, o racismo residual do filme deixa em aberto o quanto a amplitude dessas vozes estereotipadas contribui para as transformações das condições de vida das pessoas pretas.

Fonte:
Jornal O POVO