Rede de mitos latinoamericana
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Quinta-feira, 19 de Março de 2009 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Na busca de encontrar a essencialidade no caos que ronda os escombros do neoliberalismo a sociedade vai se reinventando e se redescrevendo por meio de novas percepções e em novas atitudes e comportamentos. Torna-se cada vez mais evidente a necessidade de revitalização, recriação e ressignificação das narrativas que, mesmo secularmente desconsideradas pelas culturas dominantes, guardaram vigorosos elementos da história, do cotidiano social e dos saberes da natureza; narrativas essas que passam a ser indispensáveis nas confrontações de rearranjos geopolíticos e na intensificação do diálogo global.
Nesse cenário, as discussões sobre a integração latinoamericana ganham importância estratégica, tanto na busca de equilíbrio regional como na construção de uma agenda externa comum. Instrumentos de promoção do compartilhamento como o Mercosul e a Unasul devem ser aprofundados em seus formatos institucionais, para que viabilizem a implementação de iniciativas como o Banco do Sul e as universidades da Bacia Amazônica, da Fronteira Sul, da América Latina e Luso-afro-brasileira.
A realização de um novo padrão civilizatório passa pelo fortalecimento do desenvolvimento continental. Para isso, faz-se indispensável a identificação e mobilização de outras forças comuns. Precisamos conectar a nossa parabólica cosmogônica no tempo, no espaço e no imaginário mítico, dando margem ao diálogo entre a razão da modernidade com a intuição da eternidade. O futuro depende da nossa capacidade de deixar conviver a lógica, como força do pensamento racional, com a imagem, aqui posta como o poder do pensamento simbólico. É com essa compreensão que defendo a criação de uma rede de mitos latinoamericana, a Unamitos, como reforço à multilateraridade.
O mito estabelece um vigoroso vínculo do humano com o transcendental, mediado pela cultura e não pela economia ou pela política. E os recursos míticos da América Latina são invejáveis. No Brasil têm avançado as movimentações de recontato com o Saci-pererê, na condição de ente fantástico mais conhecido em todo o país e de sua participação ativa nas mobilizações sociais que vêm barrando os avanços das festas de halloween. Recorrer à força catalisadora dos mitos é reconhecer a sua capacidade de dar impulso à mobilização social. A popularização de mitos, por meio da aproximação e do intercâmbio, é uma maneira de produzir identificação e de combater à massificação.
Na galeria de anti-heróis americanos, como o Saci, figuram mitos das culturas pré e pós-colombianas, como o Quetzalcoatl, o pássaro/serpente da cosmovisão maia e asteca, sobrevivente nas plagas mexicanas e guatemaltecas; o incaico Wiraquocha, do imaginário andino peruano e boliviano; Maria Leôncia, a deidade encantatória do sincretismo venezuelano; e os mitos da representação ficcional, como Martín Fierro que, do poema épico de José Hernandez (1834-1886), entrou para a alma argentina pelo inconformismo gaúcho contra a tendência europeizante que dominou o imaginário daquele país.
Em palavras meio desajeitadas pode-se dizer que os mitos populares habitam dois regimes do imaginário; um diurno e outro noturno. No diurno, ele se nutre da presença cativa do sistema épico, representado pelas armas, pelo ato heróico, pela figura hiperbólica do guerreiro; e, no noturno destaca-se no sistema dramático, onde são guardados os mistérios, a magia e os seres fantásticos. Esses sistemas são circundados pelo que os estudiosos do assunto chamam de esquemas (força afetiva que aciona os gestos espontâneos) e pelos arquétipos (representações psíquicas do inconsciente coletivo). Já os símbolos e as imagens existem para concretizar os esquemas e os arquétipos.
Ainda de modo um tanto rude, mas com a intenção de simplificar a equação que está na base da necessidade de criação de uma rede de mitos, é possível dizer que os arquétipos fazem às vezes de substantivos dos esquemas. Ou seja, se pensamos no esquema liberdade, o seu arquétipo pode ser um pássaro voando, por exemplo. Então, considerando a urgência da descoberta de uma narrativa continental comum, cabe no desenvolvimento de instrumentos de integração latinoamericana, a configuração de uma rede de mitos, cuja função seria aproximar as imagens produzidas pelas diferentes culturas, gerando um espaço para a realização dos nossos arquétipos.
A prática do convívio social e cultural provocado pela busca, em todos os países do continente, daqueles mitos que representam com autenticidade às sociedades que os criaram, abre inúmeras possibilidades de conciliação de opostos complementares, tendo como mecanismo propulsor o invisível que se torna visível no imaginário e o irreal que se torna concreto na crença. O mito pode fazer isso porque é orgânico e ao mesmo tempo por integrar a vertente imaginária da comunidade universal. A imaginação é a energia essencial na construção de sentido. E o que o mundo está carecendo é de sentido.
A minha defesa em favor da abertura de espaço para a experienciação dos mitos está fundada na busca de alternativas para destravar o nosso imaginário, atualmente tão reduzido à inteligência técnica. Com a aceitação dos mitos estaremos nos dando o direito de resgatar emoções e desejos perdidos nos labirintos da funcionalidade. Para isso teremos que superar alguns bloqueios das correntes psicanalíticas e sociológicas, que ao exercitarem o lado ignorante da ciência, acabam negando a dimensão transcendental do mito, e os segmentos religiosos que têm todo um histórico de redução do mito ao diabólico, por verem nele um concorrente no plano do sagrado.
O mito encanta por se revelar na interpretação cultural do inexplicável e por ser um elemento de inversão do engessamento da rotina. Ele instiga o simbólico em diversos domínios e põe na roda uma inspiração capaz de libertar o humano do próprio conceito de si. Quando falo em remitologização não falo de trazer para os dias atuais os mitos em suas características passadas. Acolhidos no presente eles terão o enredo e a forma com que forem percebidos nos dias de hoje. E isso não é nenhuma invencionice minha, pois todo mito deriva de vários processos de significação que o modelam na própria evolução das sociedades.
Abrir espaço para a libertação dos mitos, muitos deles enjaulados no zoológico do folclore, pode interferir ainda no excesso de realismo que vivemos, amenizando muitas zonas de conflitos derivados do individualismo, considerando que o mito, por sua natureza, é coletivo. E justamente por ser um ente coletivo ele age como catalisador e estimulador do equilíbrio entre diferentes. Criar uma rede de mitos é fundamental para a produção de um novo sentido de destino pelo revolver das visões de um mundo que chegou ao esgotamento das suas forças vitais. Evocar a participação dos mitos populares é se valer de algo que vem de antes e que está além da memória, da história e das ideologias.
Abraçar nossos mitos é uma oportunidade de nos encontrarmos com o nosso nível mais primitivo, no momento em que os significados plenos da vida entram em declínio sistemático. Com a Unamitos teríamos os canais de articulação e compatibilização entre os símbolos particulares da cultura latinoamericana e os arquétipos globais. A linguagem mítica serve para nos comunicarmos no campo do imaginário, facilitando o reatar dos nossos laços extrarracionais e permitindo a vinculação direta da humanidade com o meio ambiente. Quer dizer: os mitos têm um papel relevante a cumprir no desvendar do enigma do desenvolvimento.