Reencontro com Anna Torres
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno3, pág.2
Quinta-feira, 30 de Agosto de 2012 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Há pessoas que temos a alegria de conhecer e que, mesmo vivendo longe, não deixam de fazer parte da nossa vida. A cantora Anna Torres é uma dessas pessoas que eu conheci e que fiquei com a certeza de que havia conhecido alguém. Fizemos muitas coisas juntos, desde parcerias musicais até um disco peterpanamericano, intitulado “Terra do Nunca”, com arranjos do Paulo Lepetit, o baixista da Isca de Polícia, a banda do lendário Itamar Assumpção.
Mas ela, como a tartaruga Manuelita, de Maria Elena Walsh, foi embora para Paris. Correspondência vai, correspondência vem, até que um dia deu certo o nosso reencontro. Depois de quinze anos, Anna está em Fortaleza novamente, cumprindo uma série de shows da sua turnê de lançamento do CD “Divas”, no qual reverencia grandes cantoras do jazz e da música brasileira, gravado no “Petit Journal Montparnasse”, um destacado clube de jazz parisiense.
Tenho acompanhado o trabalho da Anna Torres no seu esforço de construção de uma carreira internacional. Vez por outra ela me atualiza das apresentações que faz constantemente na França, mas também em países como o Marrocos, a Tunísia, nos Emirados Árabes, na Espanha, Inglaterra e Estados Unidos. Recordo de um dos e-mails que ela me enviou em 2009, quando estava grávida da Marianna: com figurino branco, descalça e umbigo de fora, ela estreava a filha no teatro da Universidade Sorbonne (Paris V), com participação especial de batuque e capoeira, num espetáculo que se chamou “noite branca com Anna Torres”.
No primeiro momento do nosso reencontro em Fortaleza ela me mostrou com ternura as fotos da Marianna, com quase três aninhos, na casa da avó, com quem está passando as férias na Itália. Como boa nordestina, Anna deu à filha um nome composto pelo nome do pai, Mário, e pelo seu, Anna. Como bom “tio” posso dizer que tenho uma responsabilidade nisso também, pois antes de fazermos o disco “Terra do Nunca”, a Anna assinava apenas “Ana”, com uma só letra “ene”. Foi na construção do projeto, no desenrolar das nossas conversas, que ela decidiu colocar dois “enes” entre os dois “as”.
Anna Torres segue uma trajetória que se aproxima da que foi construída por sua conterrânea, a cantora e pianista Tânia Maria, diva do jazz internacional, que foi para Paris em 1974, depois morou por mais de quinze anos nos Estados Unidos e, em 1996, voltou à capital francesa. Ambas cantam emocionadas, com todo o corpo, com a alma, com o dom do improviso, com instinto e técnica. Tânia Maria é inclusive uma das grandes intérpretes reverenciadas por Anna no CD “Divas”, ao lado de Billie Holiday, Ella Fitzgerald, Edith Piaf, Elis Regina, Sarah Vaughan e Janis Joplin.
Em junho passado ela me falou por telefone que faria Rio de Janeiro, São Paulo e Maranhão, com o repertório do “Divas”. Ficou aquela indagação no ar: “E por que não o Ceará?” Sei que Anna Torres é uma cantora eclética, capaz de brilhar com um baião ou um samba, mas fiquei curioso com o conceito desse novo disco, onde ela canta músicas como “Night and day” (Cole Porter), “Fever” (Otis Blackwell), “Upa Neguinho” (Edu Lobo / Gianfrancesco Guarnieri), “Bala com bala” (Aldir Blanc / João Bosco), “Yatra Ta” (Tânia Maria), Summertime (George Gershwin) e “Ilha dos Amores” (Anna Torres / Saul Gutman), uma espécie de soul-bumbá que ela compôs para a festa de 400 anos da cidade de São Luís do Maranhão, fundada pelos franceses em oito de setembro de 1612.
Provoquei o poeta Alan Mendonça e ele aceitou assumir a produção dos shows da Anna no Ceará, juntamente com Lilian Alves e Jô Sousa, da Radiadora Cultural. O chef Faustino, que há quinze anos apoiou a turnê “Terra do Nunca”, recebeu a Anna com acolhimento de bom cearense em seu novo restaurante, da rua Bauxita, no Mucuripe. A realização ficou aos cuidados da Diz, empresa da musicista Izaíra Silvino.
Assim, e com o acompanhamento de músicos locais, a cantora maranhense abriu os dias de Ceará ontem (29/08), no bar Novos Poetas, e continua hoje e amanhã (30 e 31/08) no Sesc-Iracema. No sábado (01/09) sobe a serra e canta no restaurante Basílico, em Guaramiranga, e encerra sua circulação pelo território musical cearense, participando domingo (02/09) de um descontraído sarau com o coletivo “Bora! Ceará Autoral Criativo”, no Passeio Público. Ela demorou a voltar, mas chegou com várias opções de datas para o público rever e reouvir seu canto poderoso e suingado.
Conheci a Anna Torres em 1995, em São Luís, por ocasião do Festival Canta Nordeste, que era realizado pela Rede Globo na região, quando o Ricardo Black ganhou o prêmio de melhor intérprete, com a música “Latitude”, parceria minha com Tato Fischer. Fiquei impressionado com a biomusicalidade da Anna Torres, com voz potente e seu gosto pelo cantar. Consegui o contato dela com o amigo e compositor Josias Sobrinho, autor de “Engenho de Flores” e outros tantos sucessos da música maranhense. Daí, surgiu a ideia de fazermos um trabalho experimental (Terra do Nunca), no qual pudéssemos expressar o que havia de convergência estética urbana entre um compositor do sertão do Ceará, uma cantora da faixa amazônica do Maranhão e um músico do interior de São Paulo.
Foi uma farra de liberdade criativa e desobrigada, esse ensaio de Música Plural Brasileira. O disco, que teve produção executiva da cantora Mona Gadêlha e de Rosely Lordello, contou com a participação de figuras especialmente agregadoras em sensibilidade, emoção e qualidade artística, como o trombonista Bocato, o guitarrista Lanny Gordin, o percussionista Gigante Brazil, o pianista Daniel Szafran, o rapper Rica Cavemam, o físico indo-paquistanês Harbans lal Arora e a iogue indiana Ved Kumari Arora. No meio das feras ela mostrou que era uma delas e topou gravar a voz no nível da banda e não com a banda servindo à intérprete. O resultado foi uma boa surpresa para mim, pela garra e pelo potencial artístico da Anna.
Em vários momentos pude constatar que ela era cantora de estúdio e de palco, de técnica e de emoção. Por ocasião dos shows que fizemos, lançando o “Terra do Nunca”, eu sempre ficava admirado com a desenvoltura dela. Foi assim nas ruas do bairro Aerolândia, no bar The Wall; no aconchego do Sindbar, do Sindicato dos Jornalistas; no salão animado do Domínio Público, na Praia de Iracema; no ruge-ruge do projeto “BEC Seis e Meia”, no anexo do Theatro José de Alencar; e na quadra de esportes da “Broadway”, na praia de Canoa Quebrada, show que contou com a participação da cantora paulistana Vange Milliet.
Não estou contando tudo isso por saudosismo, a minha intenção com esse rápido flashback é juntar as pontas de dois momentos unidos por quinze anos de duas passagens de uma artista pelo mesmo lugar e fazer a devida saudação ao que em Anna Torres me parece permanecer entre o experimentalismo pop do “Terra do Nunca” e a predominância jazzística do “Divas”, que é o valor artístico e o espírito indomável dessa guerreira cafuza; a menininha Ana Maria Lopes Torres, que nasceu em Lago da Pedra, nos confins do Maranhão, que um dia sonhou ser cantora e fez por onde merecer o seu sonho.