É difícil ser simples na construção de uma trama tão complexa quanto a do filme italiano “Rosa e Momo” (Netflix), em que a infância perpassa problemas crônicos e atuais de sobrevivência e se impõe como a essência do enredo. Em licença comparativa, pode-se dizer que o elemento central dessa obra está presente nesses tempos de pandemia em que as pessoas precisam descobrir como cuidar umas das outras em busca de salvação, ante o luto generalizado e crianças órfãs desamparadas.
O diretor Edoardo Ponti, suíço, filho da célebre atriz italiana Sophia Loren, chamou ninguém mais, ninguém menos do que a própria mãe, de 86 anos, para fazer o papel de Madame Rosa, uma judia, que sofreu as atrocidades dos campos de concentração nazistas, virou prostituta e, ao envelhecer, montou uma creche em casa para ganhar a vida cuidando dos filhos de prostitutas jovens que não tinham onde deixá-los.
Como se esticasse um elástico etário e, ao soltar, a ponta fosse a outro extremo, Ponti faz o contraponto narrativo com o ator ítalo-senegalês Ibrahima Gueye, de 12 anos, que protagoniza Mohamed, o Momo, um menino muçulmano órfão, oriundo do Senegal, que vive sob a tutela do médico do bairro e um dia, mesmo em situação de recusa mútua, é entregue aos cuidados de Rosa.
A super atuação da consagrada estrela e do brilhante estreante se dá em um cenário napolitano de meados do século passado. Rosa e Momo têm uma diferença de oito décadas entre si, mas uma infância traumática e muitas frustrações em comum: a criancice dela em um passado distante do qual não consegue se libertar, e a dele em um presente em que não sabe muito bem como aprender a viver.
Adaptado do livro “A vida pela frente” (1975), do romancista lituano Romain Gary (1914 – 1980), “Rosa e Momo” é estruturado em sensibilidades que vinculam um garoto insubordinado que pratica pequenos furtos e vende drogas sem a menor noção de perigo e uma garota maltratada e rebelde que habita a alma de uma velha senhora que, pela realidade experienciada, confirma semelhanças na brutal existência dos dois.
Os personagens não se vitimam nem são vitimados. Encaram a situação embalados por uma trilha sonora que tem a cantora italiana Laura Pausini cantando “Io Si”, da compositora estadunidense Diane Warren, e a brasileira Elza Soares interpretando “Malandro”, de Jorge Aragão e Jotabê. O espaço para pranto é pequeno nesse drama. A cena mais emocionante do filme é quando Momo vai visitar Rosa no hospital e não é reconhecido por ela.
A manifestação de demência tira o chão do garoto em uma lágrima que sinaliza a inflexão na realidade. Ele havia descoberto que para viver precisava buscar relações com o mundo conforme as leis do meio. E praticamente corria atrás de assegurar o dia, não obstante o permanente dilema entre ser aceito e ser rejeitado. A busca por satisfação de viver se expressa no rosto de Momo quando ele consegue comprar uma bicicleta e sai pedalando pelas ruas.
Momo aprendeu a atuar sobre si mesmo, sem aceitar condições de inferioridade. Rosa gostava disso. Era uma sobrevivente com número tatuado no braço. O afeto entre os dois nascera de instintos diferentes. Ela via nele a menina que fora, e ele via nela a mãe que não tinha. Privado do amor materno, Momo tem relações imaginárias com uma leoa que segura a sua mão. A mesma felina que alivia seu coração ao ficar em vigília no túmulo de Rosa.