Roteiros de leituras do mundo
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno3, pág.2
Quinta-feira, 22 de Novembro de 2012 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Dos bons frutos que colhi na safra da X Bienal Internacional do Livro no Ceará (8 a 18/11/2012), destaco como um dos mais saborosos e proveitosos o conjunto de livretos da coleção Mundo da Leitura, do Centro de Referência da Literatura e Multimeios, do Curso de Letras da Universidade de Passo Fundo (UPF), editada com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). São 20 publicações com planejamento de práticas leitoras multimidiais, resultantes de um diálogo permanente e direto daquela universidade com leitores de escolas brasileiras, sobretudo gaúchas, catarinenses e paranaenses.
Orientada pela evolução de novas concepções de leitura e novos jeitos de ler, a coleção, intitulada Roteiro de Práticas Leitoras para a Escola (2010 e 2011), sugere abordagens para o despertar do gosto pela leitura em diferentes suportes e linguagens, com tratamento específico para os níveis infantil, ensino fundamental, ensino médio e ensino superior. Recebi esse valioso presente das mãos da professora Tânia Rösing, que esteve na Bienal em Fortaleza participando do 6º Encontro do Sistema de Bibliotecas Públicas do Estado do Ceará.
No texto de apresentação ela expressa categoricamente a defesa que faz da leitura multimidial em espaços educativos e culturais: “Precisamos despertar o interesse dos leitores em formação pela leitura da música, da pintura, do teatro, da dança, da escultura, da arquitetura. Precisamos mostrar o valor das histórias em quadrinhos, das charges, dos cartuns, do grafitti, formando públicos interessados nessas manifestações artísticas. Precisamos valorizar as manifestações da cultura popular, ampliando nosso conhecimento e nossa sensibilidade pela pluralidade de vozes em que se constitui a cultura em toda a sua complexidade e em toda a diversidade”.
A produção desse roteiro pedagógico, incluindo os volumes do projeto Livro do Mês (2006 a 2011), com metodologia de leitura antecipada de obras com enfoques em mídias, dialogismo e relação leitor-autor, revela uma consciência, presente na UPF, da importância do investimento em leitura, como condição indispensável ao desenvolvimento. Para Tânia Rösing, através da leitura, as pessoas podem alcançar gradualmente patamares de criticidade na condução de suas vidas e na atuação nos mais diferentes grupos e áreas sociais. Assim, sem receio de expor suas inquietações com relação a um assunto repleto de interrogações, a Universidade de Passo Fundo oferece esse roteiro no sentido da reflexão permanente pelo estímulo à vivência de experiências leitoras.
Além do trabalho que vem sendo desenvolvido pelo Centro de Referência da Literatura e Multimeios, desde 1997, incluindo a produção do programa de televisão Mundo da Leitura, veiculado nacionalmente pelo canal Futura, a equipe de responsáveis pelas propostas de práticas leitoras com distintos públicos e meios conta com experiências colhidas no maior evento brasileiro de formação de leitores, que é a Jornada Nacional de Literatura, realizada há mais de três décadas pela UPF, com apoio da Prefeitura Municipal de Passo Fundo. Com tudo isso, a professora Tânia, que fundou e é coordenadora da Jornada e do Centro de Referência, faz questão de dizer que essa é uma equipe que ouve bem, que está aberta a contribuições, numa clara atitude de quem faz para valer.
A educação do olhar, pelo estímulo à formação da memória visual e sua vinculação com a imagem que existe na palavra em si, é apresentada pela equipe de UPF no plano da leitura audiovisual para os primeiros anos do ensino fundamental, como maneira de instrumentalizar o estudante no seu processo de construção do conhecimento. O conceito trabalhado é o de encontrar o potencial do concreto e do virtual na relação entre o signo da língua escrita e sua transformação em bytes, entre o papel em branco e o monitor, a caneta e o teclado.
No anseio de conquistar leitores, partes desse importante roteiro apresentam displicência a respeito de questões relevantes, como a da publicidade voltada para a criança. O trabalho recomenda que o educador exiba peças comerciais para crianças como se estivesse apenas fazendo uma pesquisa qualitativa de opinião e não em uma missão educacional. No capítulo Mãe, compra para mim? o tema chega a ser mencionado, mas perde a chance de, por exemplo, chamar a atenção para licenciamentos e usos de personagens como mascotes de vendas.
Em uma das etapas propostas para o 3º e 4º anos, a título de mostrar como são feitos os filmes de animação, a metodologia pede para o professor literalmente “Exibir aos alunos o vídeo da propaganda da Coca-Cola…”. Com tantos e tantos exemplos existentes de caráter anímico no audiovisual é difícil entender a razão da escolha dessa propaganda de açúcar líquido e gasoso, num país onde cresce a taxa de sobrepeso, obesidade e refluxo. Ademais, consciente ou inconscientemente, merchandising em material didático não é nada recomendado.
O Roteiro de Práticas Leitoras para a Escola, da UPF, abrange ainda, para estudantes do 5º e 6º anos, as histórias em quadrinhos, charge, cartuns, tirinhas cômicas e discute símbolos vividos no âmbito da cultura popular, de massa e acadêmica. Há espaço para a dinâmica dos saberes e do conhecimento, da sabedoria e da erudição. Ao mexer especificamente na temática do folclore, o material deixa a desejar um pensamento mais descolado do passado, qualquer coisa que pudesse aproximar mais as crianças das tradições e crenças populares, estimulando-as a vivenciarem esses mitos e não apenas a estudarem sobre eles.
No bloco de uso de diferentes mídias e criação colaborativa, destinado ao 7º, 8º e 9º anos, é muito bacana a noção da riqueza de convivência em grupo e da aprendizagem com o outro, compartilhada com a juventude. O mesmo tom efusivo faz-se presente na parte do ensino médio com enfoque na literatura fantástica. Sei que nem tudo dá para estar escrito em um trabalho que se propõe a oferecer tópicos a serem complementados no ato de seu uso, mas senti falta de referências comparativas em exercícios como o de “imaginar-se em outra época”; algo como paralelos da violência entre as cidades amuralhadas medievais e as periferias dos atuais centros urbanos.
Nesse ponto de alusões comparativas, acho que cairia bem expor determinados contextos e atemporalidades, como no caso das práticas de minicontos e haicais, dirigidas ao ensino médio. O miniconto é citado como uma literatura decorrente do “tudo tão rápido e fragmentado”, mas sem uma perspectiva. E os jovens precisam de horizontes. Por sua importância, esse Roteiro de Práticas Leitoras para a Escola precisa ser mais vórtice, mais roteador, mais sinalizador de rotas. A narrativa curta e criativa, do tipo 140 caracteres definidos pela empresa Twitter para conversação global, seria percebida com mais curiosidade caso, ao ser associada ao miniconto, pudesse fazer alguma ligação da hipermodernidade lipovetskyana com a tradição japonesa, na qual o haicai surgiu como gênero poético.
A coleção Mundo da Leitura tem ainda um caderno extra, orientado para o período do 1º ao 4º ano, e outro destinado ao ensino superior. Todos apresentam obras literárias embasando a discussão dos temas e suportes propostos. Grandes abordagens, como a combinação da literatura com a música no processo de aprendizagem, certamente ainda estão por ser trabalhadas e retrabalhadas pela equipe desse Centro de Referência da Literatura e Multimeios da atuante Universidade de Passo Fundo, que tem dado significativas contribuições à construção do conhecimento para a aprendizagem emancipatória.