RUTH GUIMARÃES (1920 – 2014) – Caipira, modéstia à parte
Artigo publicado na RIVISTA do MINO nº 147 (Editora Riso), p. 20
Edição de junho de 2014 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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No dia 21 de maio de 2014, os sacis do Vale do Paraíba, interior de São Paulo, começaram a tirar o gorro e a curvar o corpo em reverência ao encantamento da escritora Ruth Guimarães Botelho. Sacis e SACIólogos de todo o Brasil fizeram o mesmo. seu corpo foi velado na casa do sítio onde nasceu e onde morava, na cidade de Cachoeira Paulista.

Ruth Guimarães estudou letras, filosofia e dramaturgia na Universidade de São Paulo (USP), foi aluna de Mário de Andrade e trabalhou como datilógrafa, revisora, jornalista, escritora, tradutora, teatróloga e professora de português, grego e latim. teve uma ativa experiência urbana, mas voltou ao território das suas origens, onde cultivava plantas e ervas medicinais, criava galinhas, cachorros e patos.

Gostava de ter nascido entre as águas do rio Paraíba e os trilhos da estrada de ferro, onde seu avô materno, o português José Botelho, trabalhou quando chegou ao Brasil. era anoite enluarada, quando chegou ao mundo em 1920, e dia nublado, quando partiu em 2014. Tinha orgulho de ser negra e caipira. Costumava dizer que era “caipira, modéstia à parte” porque na sua compreensão “caipira” era um estado de espírito e não uma característica regional.

Amava a formação mestiça do povo brasileiro. Falava de costumes, contava causos, histórias de onça e fazia pesquisas de cunho etnográfico e antropológico com a mesma desenvoltura. Tinha amplo conhecimento da literatura universal. Era uma lobatiana autêntica na aproximação que fez da mitologia clássica com a cultura da roça.

Parte significativa da obra de Ruth Guimarães está voltada ao fabulário brasileiro, às qualidades da nossa cultura, sobretudo aos seres fantásticos, aqueles que não existem, ao sobrenatural do dia a dia, às manifestações demoníacas do imaginário e à sabedoria astuta de Pedro Malazartes.

A memória e a oralidade cachoeirense, valeparaibana e das águas profundas do Brasil foi o campo fértil da sua colheita e semeadura de contares em dezenas de livros que retratam a universalidade do ser pessoa, habitante do universo rural paulista e mineiro.

Quando Ruth Guimarães lançou o livro “Calidoscópio – a saga de Pedro Malazartes” (Caixa de Histórias, São Paulo, 2006), fiquei impressionado com a abordagem que ela fez desse personagem da arte de vender fumaça, e escrevi na minha coluna, então publicada no Diário do Nordeste (17/05/2007) [leia aqui], que se tratava de mais uma de suas magias híbridas, de enredo com visível precisão da figura imprecisa e do modo desregrado de vida desse gênio paracaboclo, insidioso e insubordinado.

Desapegada da necessidade de viver apenas a realidade concreta, Ruth Guimarães ganhou atributos dos seres fantasiosos. Não fosse a prova física da sua existência, os irmãos que criou, os filhos que teve, os netos que deixou e os livros que escreveu, daria para dizer que ela não era deste mundo. Cheia de imagens em suas descrições, dizia que a nossa passagem na vida é como o passar de uma canoa, que bole um pouco na água, a água vai e vem e pronto. Só que algumas pessoas viram lenda.