Samba do Criolo safo
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno3, pág.2
Quinta-feira, 23 de Agosto de 2012 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Foi mais de um ano de espera para ver uma apresentação do Criolo em Fortaleza, depois que passei a ouvir com frequência e admiração o seu disco “Nó na orelha” (Matilha, 2011). Fico imaginando o quanto não foi demorado para ele só poder se apresentar na terra dos seus pais, depois de mais de duas décadas de atuação como artista de rap. Fato injustificável à parte, quem foi assistir ao show “Na batida do Criolo”, na sexta-feira passada (17), na Guarderia Brasil, Praia do Futuro, viu que a espera não foi em vão.
Criolo naturaliza o rap como fator cultural no Brasil, inserindo-o no campo da música plural brasileira pelo sentido de pertencimento, sem perder as características que o universalizaram como estética dos apartados, marcada por batidas de refrão e embolada-urbana, que desconsertam (com “s”) e concertam (com “c”) expectativas de ritmo e narrativa de uma sociedade positivamente mestiça e negativamente desigual. Criolo é fruto dessa trama da mistura na sua diversidade singular; é filho do Brasil real.
O CD “Nó na orelha” representa a materialização do processo de amadurecimento antropofágico do rap brasileiro; a música como plataforma ética e poética da adversidade, seus aspectos psicológicos e filosóficos, pela força do significado da palavra e não pela agressividade da entonação. Criolo conseguiu essa reversão sem somatizações ou atitudes antissociais. Em seu trabalho, a arte se pronuncia em um campo de significados de atitudes, a partir do seu núcleo crítico comunitário e da sua memória cultural. Ele foi a letra “C” do Abecedário da Música Plural Brasileira que publiquei neste Diário (8/3/2012), como síntese das trilhas sonoras do meu cotidiano.
A propósito, as músicas do filho do casal Cleon e Vilani têm sido intensamente escutadas na nossa casa também pelos nossos filhos. Tanto que, mesmo a apresentação tendo sido bem tarde da noite, fomos todos, levando máquina fotográfica e a capa do disco para ser autografada. Valeu a pena. No palco, vimos um artista sensível, com sua dança de corpo jogado em gestos firmes e amorosos; um jeito especial de interpretar o mundo e de se ver dentro dele. No camarim, vimos de perto a grandeza da sua humildade, ora com o espanto de um passarinho que percebe ser observado e, ora, abraçando os manos com a graça de quem está transmitindo a segurança de que essa pegada tem valor.
A denúncia na arte de Criolo veste-se da vontade de embelezar o mundo. Tem estética poderosa, narrativa sincera. Quando ele tem coragem de falar no palco que usar drogas é uma roubada está dizendo que não tem receio de patrulhamento. No bolero “Freguês da meia noite” conta a história de um usuário de drogas que espera “a confeiteira e seus doces” para comprar “furta-cor de prazer”, mas depois de conseguir meditar decide que “Dessa vez não serei seu freguês”. E no rap misto de maracatu, “Sucrilhos”, passa nova mensagem: “Cocaína desgraça a vida de um bom rapaz”. Ele sabe que é na favela que essa história repercute de forma mais trágica e sabe que nada pode ser mais careta hoje do que fazer parte dos financiadores da violência por meio do consumo de drogas.
Criolo outorga à juventude uma perspectiva mais digna e oferece seu som, sua voz, sua poesia em nome de um outro olhar, de outro estilo de vida menos consumista, menos mentiroso. Com isso, ele dá um chega para lá na desesperança e na fantasmagoria daqueles que insistem em perturbar a juventude, para se aproveitarem do seu coração utópico. Não tem essa de vida paralela para quem chegou ao mundo com tantas limitações sociais e econômicas. Como dizia o Henfil, ele tem mãe e quem tem mãe não tem medo. E tem pai, amigos, uma relação familiar e uma vida comunitária modesta, mas intensa.
Deixa claro na letra do afrobeat-funkeado, “Bogotá” que desde pequeno sabe o que é “brincar no precipício”, que aprendeu que “quando uma pessoa lhe oferece um caminho mais curto, fique atento, irmão”. O grito de indignação de Criolo é macio, porque ele tem a compreensão de que “cada um sabe o preço do papel que tem”, e profundo, para poder encarar as frustrações da insanidade do egoísmo social com poesia e bombardear a desigualdade com valores. Sabe da “força do verso” e da “rima que espanca”, como rasga no rap “Mariô”, parceria com Kiko Dinucci, letra que faz coro com a “Roda Viva” de Chico Buarque no esforço de ir contra a corrente.
Esse recurso de metacanção aparece bem utilizado também no rap “Sucrilhos”, como uma caricatura vigorosa da canção “Índio”, de Caetano Veloso: “Cartola virá que eu vi / tão lindo e forte e belo como Muhammad Ali / cantar rap nunca foi pra homem fraco”. Como o “abraço pra ti / pequenina” que Caetano dá em “Terra”, aludindo ao baião “Paraíba”, de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira. Criolo canta o orgulho da cor, do cabelo, do nariz e a felicidade de ser “índio, caboclo, cafuso, crioulo”, de ser brasileiro; o que Caetano vaticinara em seus versos: “Um índio descerá de uma estrela colorida e brilhante (…) em átomos, palavras, alma, cor, em gesto e cheiro / em sombra, em luz, em som magnífico”.
Criolo tem luz própria, mas nem por isso quer clarear sozinho. É um poeta, um MC, com ideais de juventude e uma narrativa voltada ao que chamo de “cidadania orgânica“. Atento às motivações da espiritualidade – apresentou-se com vestes brancas de candomblé – e foi além dessas fronteiras, como no soul-canção “Não existe amor em SP”, no qual afirma que “Não precisa morrer pra ver Deus / Não precisa sofrer pra saber o que é melhor pra você”. Criolo não é gueto, Criolo é Mandela, Gandhi…, alguém aberto às vozes que combatem desigualdades e injustiças. Sua poética vocal tem um “criolês” de pregação de paz, direitos iguais e orgulho dos ancestrais e pede para que ninguém baixe a guarda porque “a luta ainda não acabou”, conforme convoca no reggae “Samba Sambei”.
“Grajauex” é um rap de ilustração com imagens faladas do “x” da questão: “Duas laje é triplex / No morro os moleques (…) o ouro branco, o pó mágico e o poder de um Rolex / Na favela, com fome, atrás dos Nike Air Max / Os canela cinzenta que não tem nem cotonets (…) Os irmão que tão com fome desce três marmitex / Sabão de coco não é Pompom com Protex / E se jogo do bicho é contravenção, Mega Sena é ilusão pra colar com durex (…) Atrás de um verdix pra mandar por Sedex / Zona sul é o universo e os vagabundo é belezex”… Um dialeto de sons do inconsciente, como diria Nise da Silveira.
O trabalho do Criolo recicla, reutiliza e reprocessa aspectos culturais que, segundo Tom Zé, caíram do córtex (zona mais rica e sofisticada de processamento dos neurônios) para o hipotálamo; deslocamento que ele inventou de chamar de “lixo lógico” (Revista Bravo! nº 179, p. 24, São Paulo, junho 2012). Tom Zé explica que o “lixo lógico” é tudo aquilo que vai ficando de lado porque não parece inteligente de ser utilizado, como ideia de valor social e cultural. Esse conceito aplica-se bem ao trabalho de Criolo. Nele o rapper resgata e dinamiza o aprendizado das suas raízes da música plural brasileira e a herança nordestina, combinando tudo com o rap estadunidense, devolvendo o “lixo lógico” ao córtex, produzindo originalidade, gerando o novo.
Por não ser um instrumentista, ele compõe como Patativa do Assaré, João do Vale e Dona Ivone Lara compuseram, o que facilita para que sua música seja um ato de liberdade de um saber oral e de uma compreensão de mundo que ecoa compaixão, aflora identificações e suscita reflexões, contribuindo para alargar a percepção de quem o escuta. Nesse samba do Criolo safo, o “samba” é uma velha festa da cearensidade e o “safo” uma mistura de espírito descolado com talento recitativo de Safo, a emblemática poeta grega do século VII, abrigados na paródia de Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto), que ironizava a pressão em cima dos sambistas para fazerem enredos com fatos históricos.